13 de Maio marca o fim oficial da escravidão e o começo do racismo

Da Agência CUT – Esqueçam o 13 de Maio. Foi pura armação histórica, à qual deram ares de redenção épica para atribuir à “generosidade” de uma princesa branca e banhada por mucamas o fim da escravatura no Brasil. Uma enganação que serviu aos interesses econômicos e políticos do governo do Império e à parte da sua elite branca, transformada em “lei de ouro” para inglês ver. Até poucas décadas atrás, em livros e mentes, essa imagem da Redentora que libertou os escravos das correntes aprisionou no limbo da história a longa resistência e luta dos negros contra a própria escravidão, além de reduzir a importância do movimento abolicionista, uma das primeiras formas organizadas de luta política em terras coloniais.

Após tramitar no Parlamento em tempo recorde de seis dias, a Lei Áurea foi sancionada em 13 de Maio de 1888 pela Princesa Isabel (1846-1921), extinguindo oficialmente a escravatura no Brasil. Na realidade, porém, essa legislação sempre exaltada como uma das mais importantes do País tirou os escravos da senzala para colocá-los no caminho da favela, onde boa parte da população negra é obrigada a sobreviver até os dias de hoje. Não à toa, a primeira favela do Brasil, a da Providência, surgiria nos morros do Rio de Janeiro em 1897, nove anos após o teatro montado para Isabel e a Monarquia posarem de heróis.

“A verdade é que o sistema escravagista estava em decadência e iria acabar de qualquer jeito, com ou sem a assinatura da Lei Áurea. Isso porque a resistência dos negros e a mobilização brasileira pela abolição foi grandiosa, estruturada e longa”, contesta a secretária Nacional de Combate ao Racismo da CUT, Maria Júlia Nogueira.

A despeito da “generosidade salvadora” da princesa, a abolição viria, diz Júlia, por força da luta dos escravos, do movimento abolicionista e das pressões externas, em especial da Inglaterra, que cobrava de uma iminente República brasileira novo modelo de economia para substituir a já esgotada e criticada escravatura – o Brasil foi o último País do mundo a acabar com a escravidão.

A efeméride 13 de Maio ficou, assim, tão distante da realidade quanto o mito, academicamente já desmentido e, na prática, comprovado, de que aqui nesta nação um dia já vigeu uma democracia racial.

“O Brasil é um país racista, os brasileiros são racistas. A cultura da escravidão ainda está grudada nos poros da sociedade em forma de racismo, um racismo que é a herança mais maldita e danosa dos mais de 330 anos e escravatura”, critica a secretária de Combate ao Racismo da CUT.

Os 63 jovens negros assassinados por dia no Brasil (23 mil por ano), segundo dados da ONU, são prova dessa herança maldita.

Prisões abarrotadas de negros também refletem o racismo herdado da escravidão. A maior parte da população carcerária nacional é de negros; são 64% do total de 726 mil presos (a terceira maior do mundo, atrás dos Estados Unidos e China), segundo dados do Infopen (Sistema Integrado de Informações Penitenciárias), do Ministério da Justiça, divulgados em fevereiro deste ano.

Os negros e negras aprisionados em celas, hoje, somariam quase o mesmo número de escravos “libertados” pela Lei Áurea. Foram 700 mil, do total de 4 milhões arrastados a força para o Brasil entre 1550 e 1850 – quando foi criada a lei que proibia o tráfico de africanos para o País.

Gente que deixou de ser mercadoria e patrimônio dos fazendeiros do Império para se tornar um “problema” no dia seguinte a abolição ser sancionada. Parte da solução, porém, já estava preparada pelos poderosos: negar aos ex-escravos o direito à terra (por lei) e à cidadania, para explorá-los como mão de obra barata e condená-los a uma vida marginal e miserável.

Isso aconteceu porque a abolição não foi acompanhada de uma reforma agrária e de leis protetoras do trabalhador negro livre, o que acabou mantendo os ex-escravos em uma situação de miséria e sem chances reais de se reintegrar à sociedade.

Sem ter onde morar, foram empurrados para guetos, onde não pudessem contaminar o processo de embranquecimento do País com sua cultura, cantos, costumes, crenças e “vícios”.

Começaria aí, oficialmente, uma mudança de status para os negros libertos: escravos não mais, porém reféns da falta de tudo. Troncos, açoites, senzalas seriam abolidos. Abriu-se, porém, a porta do purgatório e nunca mais foi fechada.

“No dia 14 de Maio, saí por aí/ não tinha trabalho nem casa, sem ter aonde ir levando a senzala na alma, subi a favela/ pensando em um dia descer, mas eu nunca desci/ No dia 14 de Maio, ninguém me “deu bola” / E eu tive que ser// “bom de bola” pra sobreviver/ sem nome, sem identidade, sem fotografia/ o mundo me olhava, mas ninguém queria me ver…”. Esse trecho da música dos contemporâneos Lazzo Matumbi e Jorge Portugal, pinta o quadro do dia seguinte à abolição.

Revisão histórica

A importância histórica do 13 de Maio, porém, é defendida por pensadores e estudiosos da escravidão no Brasil. Justificam que a assinatura da Lei Áurea traduz a luta e a vitória do movimento abolicionista e do Parlamento brasileiro. Mas a maioria do movimento negro discorda e ignora a data.

“A abolição da escravatura não foi uma ação libertadora e igualitária para a população negra do Brasil”, conceituou o sociólogo Florestam Fernandes (1920-1995), em desacordo com os seus colegas acadêmicos. E isso nos anos 1950.

Em seu livro “A Integração do Negro na Sociedade de Classes”, de 1964, Florestan afirma que, após o fim da escravidão, as classes dominantes não contribuíram para a inserção dos ex-escravos no novo formato de trabalho. “Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou qualquer outra instituição assumissem encargos especiais, que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho”, afirma na obra.

O mito de uma Lei Áurea parida pela “bondade do Império”, exaltada em salas de aula e livros de história, começou então a ruir. Outros estudiosos e ativistas do movimento negro também contestaram a importância da família imperial para o fim da escravidão e exaltaram a resistência dos escravos.

Em 1988, no centenário da Lei Áurea, a data-ícone 13 de Maio foi trocada pelo 20 de Novembro, tirando da Princesa Isabel o protagonismo pela libertação dos escravos e passando-o à figura de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares.

A instituição do “Dia da Consciência Negra” tornou-se um dos principais marcos dessa revisão histórica. O 20 de novembro, que faz referência ao dia da morte de Zumbi, foi incluído no calendário escolar como Dia da Consciência Negra em 2003, quando foi instituído o ensino da história e cultura afro-brasileiras nas escolas.

Em 2011, a Lei 12.519 criou o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, mas não instituiu o feriado nacional. Depende da vontade de cada Estado e cada Município, e da aprovação de seus Legislativos, fazer isso. Hoje, a data é feriado em pouco mais de 1.000 dos 5.700 municípios brasileiros. E este é um país onde a maioria da população (54%) é negra.

Na lanterna

O Brasil seria o último País do mundo a abolir a escravatura, mas foi o que maior número de negros e negras recebeu da África e os escravizou. A maioria, mais de 80%, já estava livre antes da Lei Áurea ser sancionada porque tinha juntado algum dinheiro e comprado a própria alforria, tinham sido alforriado por seus donos ou fugido para os quilombos que fizeram a resistência ao sistema, principalmente a partir dos anos 1840.

Os Estados do Amazonas, Rio Grande do Sul e São Paulo já não tinham mais escravos antes da Lei Áurea. O Ceará acabou com a escravatura em 1884. Leis anteriores e canhestras que proibiram o trânsito de navios negreiros (exigência dos ingleses), do ventre livre e do sexagenário, contribuíram, de alguma forma, para esvaziar as senzalas.

“Se não fosse a princesa Isabel, certamente o imperador D. Pedro II ou a elite econômico-política que assumiu a República brasileira após 1889 decretaria o fim da escravidão”, diz a secretária de Combate ao Racismo da CUT, Maria Júlia Nogueira.

Abolição sancionada, “esses pretos que se danem”

O se danem não existia no século 19, mas seria a tradução do pensamento dominante à época. As elites escravocratas, segundo pesquisadores do tema, não queriam mais africanos como mão de obra, porque eles traziam para o Brasil seus maus hábitos e vícios

Para o lugar dos negros e negras escravizados vieram os imigrantes europeus, que começaram a chegar em 1850, como parte da tentativa-objetivo de “embranquecer” a população. Havia a crença de que os brancos da Europa trariam para o Brasil pré-República uma nova lógica de trabalho, com uma visão enobrecedora, considerada pelos escravagistas bem distinta da visão dos escravos.

Negro e luta de classes

Como escreveu Florestan Fernandes, a luta de classes, para o negro, deve caminhar juntamente com a luta racial propriamente dita. ‘O negro deve participar ativa e intensamente do movimento operário e sindical, dos partidos políticos operários, radicais e revolucionários, mas levando para eles as exigências específicas mais profundas da sua condição de oprimido maior”.

Porque “a democracia só será uma realidade quando houver, de fato, igualdade racial no Brasil e o negro não sofrer nenhuma espécie de discriminação, de preconceito, de estigmatização e segregação, seja em termos de classe, seja em termos de raça. Por isso, a luta de classes, para o negro, deve caminhar juntamente com a luta racial propriamente dita.

 

[Foto: Lula Marques / Agência PT]