Movimentos indígenas rejeitam “dia do índio”, criticam data folclórica e reafirmam luta por demarcação das terras
[Imprensa da FUP, com informações do Brasil de Fato]
“Você já ouviu falar muitas coisas sobre nós indígenas, várias fake news sobre “descobrimento”, língua, vestimentas e tudo mais. No entanto, está da hora de desconstruir essas reproduções colonizadoras e aprender com quem tem propriedade no assunto”. O desabafo nas redes sociais de Sônia Guajajara, líderança da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, nos convoca a fazer uma nova interpetração sobre o dia 19 de abril. Um debate ainda mais necessário no atual contexto do encerramento da maior edição do Acampamento Terra Livre (ATL) desde a sua primeira realização, há 18 anos.
Terra Livre
Encerrada no último dia 14, a edição 2022 do Acampamento Terra Livre, organizada pela maior instância de representação nacional dos povos originários do país, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), reuniu cerca de oito mil pessoas em Brasília.
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A realização anual no mês de abril não é à toa. Liderança do povo Guarani Mbya da Aldeia Morro dos Cavalos e coordenadora da Apib, Kerexu Yxapyry conta que, quando o ATL surgiu, em 2004, decidiu-se estrategicamente por fazê-lo próximo ao 19 de abril porque “no período do ‘dia do índio’ as autoridades estariam mais sensíveis às questões indígenas”.
O movimento indígena questiona a data, seu nome e a suposta “celebração” que ela sugere. “Vamos para Brasília no mês de abril para dizer que ‘dia do índio’ não é dia de comemorar. Para que se comemore o ‘dia do índio’, é preciso demarcar nossos territórios”, enfatiza Kerexu, que é também coordenadora da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY).
A demarcação de terras indígenas, paralisada durante o governo Bolsonaro, foi a principal reivindicação do ATL de 2022. A carta final da mobilização, que apresentou uma “plataforma indígena de reconstrução do Brasil”, ressaltou a importância de interromper um processo de “destruição e morte” que está em curso.
A origem do “dia de índio”
Oficializado no Brasil em 1943, o chamado “dia do índio” remete a um protesto feito por indígenas durante o Congresso Indigenista Interamericano, realizado entre os dias 14 e 24 de abril de 1940, no México.
Antecipando que não seriam devidamente escutados em um evento comandado por líderes políticos brancos, os representantes indígenas de 47 países do continente fizeram um boicote: não compareceram nos primeiros dias do Congresso.
Só em 19 de abril, seis dias depois do início, foram ao encontro e, com o impacto do protesto inicial, ganharam força nas discussões. Daí a escolha da data como uma das propostas finais do Congresso, então sugerida como “dia do aborígene americano”.
O delegado brasileiro no Congresso, veja só, não era indígena. Mas sim um homem branco: o médico e antropólogo carioca Edgar Roquette-Pinto (responsável também por fundar a primeira rádio do Brasil, mas essa é outra história).
Marechal Rondon – engenheiro, sertanista brasileiro e o primeiro diretor do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que depois se transformaria na Fundação Nacional do Índio (Funai) -, foi quem convenceu Getúlio Vargas a instituir a data. Em 1943 o então presidente assinou o decreto-lei que estabeleceu o “dia do índio”.
Índio ou indígena?
A folclorização, a homogeneização dos 305 povos existentes no país, a redução do debate sobre o tema a um dia no ano ou a ideia de que é simplesmente uma data para celebrar determinada harmonia fictícia estão entre as críticas de representantes dos povos originários ao chamado “dia do índio”.
As clássicas atividades escolares que, no 19 de abril, estimulam crianças a pintar um indígena com dois riscos nas bochechas e uma pena na cabeça, celebrando a cultura nacional, é um exemplo do reducionismo produzido por estereótipos.
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Em uma fala durante o evento Mekukradjá – Círculo de Saberes: o Movimento da Memória, o escritor e educador Daniel Mundurku afirma que, apesar de serem ancestrais, as populações indígenas se tornaram visíveis no país apenas na década de 1970 e, de forma institucional, a partir da Constituição de 1988.
Durante todo o tempo anterior, narra ele, um apelido recaiu sobre os povos indígenas como uma forma de invisibilização. Repetida à exaustão, a palavra “índio” foi incorporada por toda a sociedade brasileira, incluindo os povos a quem a alcunha é dada.
“Nos anos 1970, quando a juventude começou a se perceber parte de uma sociedade maior, porque foi assim que começou o movimento indígena, ela usou esse termo ‘índio’ como uma forma de luta. Como uma forma de identificação daqueles que eram parceiros. Então essa palavra ainda é usada, e se é usada por uma liderança indígena, é nesse sentido”, diz Munduruku.
O escritor lembra que o contexto é completamente diferente daquele em que a palavra é usada no sentido “do apelido, do desdém, do estereótipo, da ideologia”. Levando as mãos à boca para fazer o gesto, Munduruku afirma que “quando alguém olha para mim e diz ‘ah, ele é índio! Uh, uh, uh!’, a pessoa está me colocando numa classificação de menos humanidade. E aí a gente tem que brigar com isso”.
“Índio” foi a palavra dada pelos colonizadores aos povos que viviam no continente americano quando Cristóvão Colombo aqui atracou, mais de 500 anos atrás, achando que estava nas “Índias”. Indígena quer dizer originário, aquele que estava ali antes dos outros.
“Não estou falando do politicamente correto. Estou falando do correto”, ressalta Daniel Munduruku. “Palavra para nós tem sentido, tem alma, tem vida”.