Petroleiro cronista de Pampo entre premiados de festival literário

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Um petroleiro de 36 anos, há seis na Petrobrás como operador de produção na plataforma de Pampo, na Bacia de Campos, está entre os premiados do Concurso de Crônicas do I Festival de Literatura e Cultura de Macaé (Flicmac). A premiação foi entregue na manhã de hoje, durante o evento, que acontece na Praia de Imbetiba.

O petroleiro cronista é Carlos Alberto Bisogno, que ficou em terceiro lugar no concurso com a crônica “Um Minotauro na Ilha de Aço”. O texto foi produzindo justamente sob inspiração de um episódio de emergência ocorrido a bordo de Pampo.

Bisogno, que também é cineasta, tem um olhar atento e sensível às rotinas do trabalho e pretende escrever mais sobre este universo. Sua intenção é reunir as crônicas em um livro. Este é o seu primeiro texto premiado em concurso literário.

Confira abaixo a crônica premiada.

 

Um minotauro na ilha de aço

Carlos Alberto Bisogno

“Como o mundo toma um rumo delirante, devemos também ter sobre ele um ponto de vista delirante.” (Jean Baudrillard, 1990)

Um ruído constante, oscilando em ondas complexas de tons e dissonâncias, cobria todo ambiente em que ele caminhava em ronda mais aquela noite. A chuva diagonal, jogada para dentro das instalações industriais por um vento cortante vindo do leste, anunciava sua longa viagem com sua força. Até então, as gotas pesadas apenas umedeciam seu macacão laranja, mas logo encharcariam suas botas e já escorriam pelo capacete, óculos e cobriam seu rosto. Vez ou outra, era iluminado por fachos de luz que perpassava as estruturas enquanto seus passos avançavam por vigas e tubulações que ao seu redor formavam corredores disformes. Seu olhar estava suspenso, cego naquele momento. Cegueira criada pela mistificação do ambiente que vinha de sua imaginação, imaginação em forma de música (delirava ouvir Antonio Vivaldi e suas Quatro Estações). Se não fosse o feitiço que acortinava sua visão, qual fosse o foco, seu olhar encontraria a corrosão. Sim, corrosão mesmo, não é figura poética. Para onde se pudesse olhar, a degradação dos materiais por entre suas pinturas se mostrava evidente e a cada instante mais opressora entre grades de piso, tubulações e fios suspensos; elementos contorcidos em tangências que se elevavam, cruzavam ou fluíam em todos os sentidos pelas chapas de pisos e tetos como galhos metálicos de árvores multicoloridas mortas. Sem mais rodeios, ele estava numa plataforma oceânica de produção e petróleo.

O alarme soou agudo e intermitente em lá sustenido entre as luzes que piscavam e alertavam para o perigo iminente. No radiocomunicador alguém gritava na Sala de Controle Central:

—311! 311! 311!

Era o número de identificação de um vaso de pressão de gás que estava “lotando”. Ele apressou o passo, sabia que tinha que alcançar a tempo a válvula de alivio antes que o pior acontecesse — e o pior viria em explosões de calor que invadiriam todos os ambientes numa ignição incontrolável e mortal.

— Ok ! Ok! Chegando…! — ele respondeu no rádio.

Nesse instante antes que pudesse terminar sua frase, sentiu o blackout como se a escuridão abraçasse seu corpo. Assim, num legato para o grave, todos os ruídos artificiais cessaram, inclusive o alarme, em meio ao barulho dos ventos e das ondas na base da plataforma. Ele estacou os passos por um instante tentando entender, ou pensar sua situação — não há como afirmar ao certo o que se passava por sua cabeça. 

Sem lanterna, ou qualquer luz para o guiar, fechou os olhos, ouvia em delírio o Adagio molto do Outono de Vivaldi — ao passar a mão na testa, sentiu seu suor oleoso. A passo curtos, guiado pela memória, tateou pelo ambiente atravessando o obstáculo de metros de uma prisão labiríntica que ele, feito Minotauro, percorreu como conhecia. Quando chegou a válvula ambicionada, já era o Inverno de Vivaldi, acionou-a com todas as suas forças girando-a rapidamente — foi quando ouviu ao seu redor, como um bater de asas de dragão, ou qualquer criatura alada colossal, o rumor que fez tremer as tubulações sobre sua cabeça. Uma luz alaranjada tremeluziu entre as estruturas de forma fantasmagórica — a ameaça estava afastada — através do flare, lança que blotava de uma das esquinas em direção a mar, como um pescoço gigantesco do sistema de despressurização, as ameaçadoras chamas foram cuspidas para o alto e distante da plataforma. Por muitos minutos, o mar profundamente obscuro, sob as chamas, tomou-se de cor esverdeada e suave.

A chuva já havia cessado e ao longe, aos poucos, já se podia ver que amanheceria, foi então que as luminárias se acenderam com o retumbar grave da volta dos turbo geradores. Como se esse fosse um sinal para baixar a guarda, ele caminhou estafado a sua sala, sentou-se, sentindo escorrer o suor grosso de seu rosto; ligou os aparelhos, abriu sua última mensagem em áudio que dizia: 

— Bom dia, meu bem!

Então ele sorriu. E como numa crônica de uma liberdade possível, pensou: Amo minha vida!

(Dedicado à Princesa regente das profundezas dos mares risonhos)