Reforma trabalhista completa um ano, com muitos retrocessos

Nova legislação não criou empregos. Trabalhador ficou mais desprotegido

Clemente Ganz Lúcio[1]

 

“Todas as manhãs, a gazela acorda sabendo que tem que  correr mais veloz que o leão ou será morta. Todas as manhãs, o leão acorda sabendo que deve correr mais rápido que a gazela ou morrerá de fome. Não importa se és um leão ou uma gazela: quando o sol desponta, o melhor é começar a correr.”

Provérbio africano, citado por Mia Couto em “A confissão da Leoa”.

As tecnologias substituem o trabalho humano em todas as áreas da produção e circulação de bens e serviços, destruindo muito mais postos de trabalho do que criando ocupações. A lógica do capital financeiro altera as estratégias de investimento das empresas, com impactos sobre a geração de emprego. A mudança na institucionalidade do mundo do trabalho induz ao acirramento da competição e da concorrência econômica entre indivíduos, empresas e países. Os objetivos são reduzir o custo da produção e com o trabalhador, flexibilizar ao máximo a alocação do volume de trabalho e, com a garantia dada pelas mudanças da legislação laboral em boa parte do mundo, obter segurança jurídica para contratar e demitir.

A estratégia, no Brasil e em muitos outros países, tem como ponto de partida institucionalizar, por meio de reformas nas leis e regulações, a maleabilidade de contratos, jornada, salários e condições de trabalho, autorizar demissões, sem implicações jurídicas para as empresas, permitindo que a expansão tecnológica acelere as possiblidades de substituição do trabalho humano. Desemprego, fragilidade na representação e diminuição da proteção social compõem o cenário que imobiliza a sociedade para disputar o que será o trabalho no futuro.

Em novembro de 2017, com a entrada em vigor da reforma trabalhista, o Brasil deu um largo passo rumo à lógica da subordinação à economia globalizada, a partir do mundo do trabalho. A lei 13467/17 trouxe inúmeras alterações na legislação laboral, no sistema de relações de trabalho, na estrutura sindical e no papel do estado, com a promessa de gerar milhões de empregos. Depois de um ano de vigência, o que mudou? Os objetivos foram atingidos? Melhorou alguma coisa? Para responder, é preciso considerar, primeiro, para quem. Para os trabalhadores ou os empregadores (privados ou públicos)?

A reforma trouxe expressivos avanços para as empresas, materializados na desregulação das regras trabalhistas, na flexibilidade para contratar, definir jornada e reduzir os custos do trabalho. Os empregadores diminuíram riscos de passivos trabalhistas, conseguiram a legalização da precarização e, em algumas situações, o incentivo à fraude. A autoridade dos sindicatos para representar e negociar pelos trabalhadores foi atacada e, para mantê-la, as entidades têm sido obrigadas a realizar esforços substantivos de resistência. A Justiça do Trabalho tem atuado de forma limitada e, como mostram estatísticas disponíveis, o acesso a ela por parte dos trabalhadores foi dificultado. As empresas comemoram, com razão, o golaço que fizeram! Gradativamente, com planejamento e continuidade, mas também com boa dose de ironia (aquele deboche de ver a dor dos derrotados), os empregadores e seus pares avançam para tornar as regras definidas na nova lei referências da regulação desse novo mundo do trabalho em irrupção.

Os trabalhadores descobrem, a cada dia e situação concreta, dimensões e aspectos desse novo mundo. Demitidos, fazem a homologação sem assistência do sindicato. Desempregados em massa, são impedidos de contar com a representação sindical como sujeito coletivo e protetor. Direitos trabalhistas e sociais são suprimidos por meio dos vários instrumentos oferecidos pela lei. Quem chega a um novo posto de trabalho já está inserido nas normas da “modernidade” propiciada pela legislação. E se ficar em dúvida sobre aceitar ou não, um cínico disparará: é pegar ou largar! Dilacerado pelo desemprego, o trabalhador tem diante de si um vasto menu de precariedade e flexibilização: um posto de trabalho intermitente ou parcial, a possibilidade de ser tornar autônomo, trabalhar sem carteira assinada, com rendimento inferior ao salário mínimo, sem direitos.

Neste ano, milhares de trabalhadores descobrem esse novo mundo. Milhares entraram nesse universo, muitos sem saber o que eram os direitos e os avanços civilizatórios conquistados em lutas e negociações de e para muitos, e que agora são memórias do passado para a maioria que precisa encarar a labuta. Diariamente, milhões de pessoas acordam cedo para trabalhar, lutando para não cair no desemprego, tentando sobreviver, enfrentando a informalidade, tarefas penosas, fazendo bicos, trabalhos por conta própria, entre outros.

Nas negociações, os processos ficaram mais longos, conflituosos e os acordos mais difíceis de serem celebrados. Os patrões passaram a apresentar pautas para revisar acordos e, muitas vezes, suprimir direitos. Muitos não aceitam tratar do financiamento sindical nem garantir proteção dos sindicatos aos trabalhadores durante as homologações ou demissões coletivas; pressionam para regular diferentes aspectos da jornada de trabalho e das formas de contratação (intermitente, terceirização, trabalho parcial, trabalho em casa etc.). Os trabalhadores, por sua vez,  tentam trazer para convenções coletivas a proteção que a legislação retirou ou flexibilizou e as condições para realizarem a atividade sindical.

A Justiça do Trabalho é incentivada a se transformar na instância que garante proteção às empresas e aos empregadores. O trabalhador agora paga para possuir acesso a algo a que tem direito. As atribuições do Ministério do Trabalho viram pó e até a extinção do órgão é uma possibilidade, ainda que haja um vai e vem das falas sobre a dissolução da pasta. Tudo coerente com o desmonte geral e irrestrito dos sistemas protetivos do mundo do trabalho e com o papel desregulador que o Estado assume.

De maneira segura e progressiva, e criando dificuldades para a reação dos sindicatos, a reforma está passando às mãos do empregador aquilo que se propôs a entregar: flexibilidade e segurança necessárias para transformar o mundo do trabalho, o sistema produtivo e o Estado.

E os empregos que seriam criados? É evidente que não foram, porque a geração de empregos depende da dinâmica econômica e da qualidade do crescimento. Sim, quando a economia voltar a crescer, os postos serão gerados. E, então, poderão ser intermitentes, parciais, flexíveis, com menores custos etc. Mas, antes de qualquer coisa, a economia tem que crescer.

É essencial observar a forma processual, permanente e constante com que são propostas e implementadas as mudanças que rebaixam o patamar de proteção dos trabalhadores e enfraquece o papel dos sindicatos na representação, na negociação e na solução dos conflitos. A regressividade das garantias se alastra como erva daninha e ocupa os espaços da proteção do trabalho e do diálogo social. Esse mundo novo não é nada admirável.

 


[1]Diretor técnico do DIEESE.