1964, o ano que jamais será esquecido

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Passados 50 anos do golpe militar, que em primeiro de abril de 1964 mergulhou o país em duas longas décadas de ditadura, o povo brasileiro ainda tenta fechar as feridas daquela época, cobrando justiça e reparação. Somente em 2012, foi instalada a Comissão Nacional da Verdade (CNV) para esclarecer as atrocidades cometidas pelo regime militar. Crimes que, vergonhosamente, continuam impunes. “Não fomos capazes até agora de punir nenhum agente que em nome do Estado matou, torturou, ocultou cadáveres. Pagamos caro por isso. Ainda temos hoje uma polícia que mata e tortura em nome do Estado”, lamenta Expedito Solaney, secretário nacional de Políticas Sociais da CUT e um dos integrantes do Grupo de Trabalho das Centrais Sindicais junto à CNV.
A classe trabalhadora e suas organizações foram o principal alvo dos militares e das elites que apoiaram e financiaram o golpe. O operariado e os camponeses eram a base de sustentação do presidente João Goulart, deposto pelos militares, com apoio dos Estados Unidos, da mídia, dos empresários e de setores conservadores do país, em retaliação às mudanças em curso no seu governo, o qual tachavam de sindicalista.

Em seu último grande ato político antes do golpe, o histórico comício da Central do Brasil dia 13 de março de 1964, no Rio de Janeiro, Jango defendeu veementemente as reformas de base propostas e anunciou novos avanços para a classe trabalhadora. Um dos decretos que mais causou alvoroço entre as elites foi a encampação das refinarias de petróleo privadas. 

 “O golpe foi contra uma República Sindical”

Para Rosa Cardoso, coordenadora da Comissão Nacional da Verdade, um dos motivos do golpe de 1964 era justamente reprimir os movimentos de trabalhadores organizados, que avançavam no campo popular. “Os trabalhadores foram o objeto principal do golpe, que foi um golpe de classe. Um golpe contra uma ‘República Sindical´. Não era a questão comunista a principal, mas dar um golpe contra a causa dos trabalhadores. Isso tinha muito a ver com o Estado que eles queriam construir naquele momento. A repressão se abateu, principalmente, sobre a classe trabalhadora”, afirmou.
 
Sindicatos e associações profissionais sofreram intervenções e suas lideranças foram perseguidas e presas. Diversos dirigentes sindicais e militantes de base perderam seus direitos civis e foram violentamente reprimidos. O Comando Geral dos Trabalhadores e as Ligas Camponesas foram sumariamente fechados. As greves foram proibidas.
 

Para investigar esses e outros crimes da ditadura contra as organizações sindicais e os seus dirigentes e militantes, a Comissão da Verdade instalou o coletivo “Ditadura e repressão aos trabalhadores e ao movimento sindical”, com participação de nove centrais sindicais, entre elas a CUT, e a CTB.  O grupo tem realizado uma série de atos políticos e mobilizações unitárias pelo país afora, homenageando os trabalhadores que lutaram contra a ditadura e cobrando punição para os agentes do Estado que torturaram e assassinaram a mando do Estado. As centrais sindicais também exigem que as empresas que defenderam o golpe sejam responsabilizadas por apoio e financiamento à ditadura.

Trabalhadores perseguidos e sem direitos

Além das atrocidades cometidas, a ditadura militar violou direitos dos trabalhadores, arrochou os salários e acabou com a estabilidade no emprego. Na Petrobrás, assim como em outras estatais, trabalhadores foram ameaçados, perseguidos e denunciados por serviços internos de inteligência, que agiam articuladamente com os órgãos de repressão do regime. Várias empresas privadas e estatais tinham as chamadas “listas negras”, que concentravam informações sobre os trabalhadores considerados suspeitos. Muitos foram demitidos por justa causa e permaneceram desempregados por longos períodos.

Mais do que manter viva a memória desse tenebroso período da nossa história, é preciso responsabilizar os que violaram direitos, torturaram e mataram sob a proteção do Estado tomado de assalto pelos militares. Só com justiça e reparação, teremos de fato a democracia plenamente restaurada em nosso país.

Caixa 2 dos empresários financiou o golpe e a repressão

A Comissão Nacional da Verdade, com a ajuda do coletivo dos trabalhadores, tem colhido depoimentos e apurado uma série de denúncias que comprovam a participação da classe empresarial no golpe de 1964 e na sustentação da ditadura militar. O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) eram os instrumentos através dos quais os donos do capital se utilizavam para financiar partidos e parlamentares de direita, dando sustentação ao golpe, com apoio, inclusive, da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos.
Em depoimento prestado à CNV, Paulo Egydio Martins, governador “biônico” de São Paulo entre 1975 e 1979, afirmou que os empresários usavam dinheiro de caixa dois nas doações que faziam ao Ipes e Ibad. Segundo a Comissão da Verdade, as federações de indústrias (Fiesp e cia), assim como as associações comerciais e clubes lojistas foram as principais financiadoras da ditadura.

Vários empresários também participaram diretamente do esquema, financiando a estrutura de repressão da ditadura. O mais famoso deles, Henning Boilesen, presidente da Ultragaz, ajudou os militares a importarem instrumentos de tortura e um desses aparatos, trazido pessoalmente por ele do exterior, chegou a ser batizado com seu nome pelos militares. Segundo a CNV, o empresário também assistiu algumas das sessões de tortura no DOI-CODI de São Paulo.

SNI tinha uma divisão dentro da Petrobrás

Durante os anos de chumbo, várias empresas contribuíram com a ditadura, fornecendo aos militares listas com nomes de trabalhadores que poderiam ser considerados “perigosos” para o governo. Ou seja, os patrões apoiaram a perseguição de seus funcionários pelos órgãos de repressão.
A Petrobrás e outras estatais eram comandadas por militares. Um dos presidentes da empresa foi o general Ernesto Geisel, que dirigiu a Petrobrás entre 1969 e 1973, de onde saiu para assumir a presidência do país entre 1974 e 1979.

Para controlar os trabalhadores, os militares implantaram na empresa uma extensão do Serviço Nacional de Informações (SNI). Batizada de Divisão de Informações (DIVIN), a unidade era responsável por investigar a orientação política e social dos petroleiros. Em maio do ano passado, a atual direção da Petrobrás entregou ao Arquivo Nacional o acervo com documentos produzidos pela Divin. O acervo foi disponibilizado para consulta pública desde outubro.

Militares privatizaram refinarias encampadas por Jango

Em outubro de 1963, os petroleiros de Mauá (SP) realizaram uma greve histórica que durou 15 dias e que resultou na encampação da então Refinaria de Petróleo União S.A. Já há alguns anos os trabalhadores do setor lutavam para consolidar o monopólio estatal do petróleo, reivindicando que todas as refinarias privadas do país fossem integradas à Petrobrás. Os petroleiros de Mauá só voltaram ao trabalho após o então presidente da República, João Goulart, assumir o compromisso de encampar a refinaria. 
A greve surtiu efeito e a promessa foi cumprida. No histórico Comício da Central do Brasil, em março de 1964, Jango anunciou o decreto que desapropriou 60% das ações das refinarias privadas. Além da Refinaria União, foram encampadas a Companhia de Petróleo da Amazônia (COPAM) e as refinarias de Manguinhos e Ipiranga. No entanto, após o golpe militar, o general Castelo Branco desfez as desapropriações e restabeleceu a propriedade privada das refinarias. Mais de 100 petroleiros de Mauá foram demitidos e a direção do sindicato, destituída.

Os trabalhadores não desistiram da luta e continuaram pressionando. Em 1974, a Petrobrás anunciou a compra da Refinaria União e da COPAM, que foram integradas ao Sistema como RECAP e REMAN.

Sindicatos foram protagonistas da redemocratização

Em maio de 1978, a greve dos metalúrgicos da Scania, em São Bernardo do Campo, desafiou a ditadura e os empresários, abrindo as comportas da revolta operária, que transformou o ABC paulista em berço de um sindicalismo eminentemente classista e combativo. O estádio de Vila Euclides foi palco e símbolo desse novo sindicalismo, que iniciou o processe de redemocratização no país. No gramado e nas arquibancadas do estádio, 80 mil metalúrgicos, liderados por Lula, realizaram uma das mais históricas assembleias da classe trabalhadora brasileira, no dia 13 de março de 1979.
Desgastados pela explosão da inflação e pelo crescimento da luta pela democracia, os generais não tiveram como reprimir os grevistas do ABC paulista. Paralisações pipocaram por todo o país, mandando às favas a lei anti-greve. Em 1981, apesar da proibição dos generais, mais de cinco mil ativistas sindicais se reuniram na Praia Grande, no litoral paulista, na 1ª Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras (Conclat), que aprovou e iniciou a construção da primeira entidade intersindical e intercategorias em nível nacional construída após o golpe militar de 1964.
Dois anos depois, a CUT foi fundada, tendo como eixos de luta o fim da Lei de Segurança Nacional e do regime militar, o combate à política econômica do governo e ao desemprego, defesa da reforma agrária sob controle dos trabalhadores, reajustes trimestrais dos salários, liberdade e autonomia sindical. A central foi fundamental nas mobilizações do movimento de redemocratização, Diretas Já, que culminou com a retomada das eleições para presidente da República.
Greve dos petroleiros foi estopim da primeira greve geral na ditadura
Em 05 de julho de 1983, os petroleiros da Replan (Paulínia/SP) iniciaram uma das mais importantes greves da categoria, que logo em seguida teve a adesão dos trabalhadores da Rlam (Mataripe/BA). Foram sete dias de enfretamento, em um movimento eminentemente político contra a ditadura, cujo estopim foi o decreto lei nº 2.025, assinado em maio pelo general João Batista Figueiredo, cortando direitos dos trabalhadores de estatais e parte dos efetivos.
Os militares ocuparam as refinarias, intervieram nos sindicatos, cassaram as direções sindicais e demitiram 358 petroleiros.  Dez dias depois, em 21 de julho,  cerca de três milhões de trabalhadores das mais diversas categorias cruzaram os braços na primeira greve geral da ditadura militar. O regime reprimiu como pode as manifestações. Em São Paulo, maior foco da greve, cerca de 800 trabalhadores foram presos.

“A Greve dos Petroleiros, em 1983, tem uma grande importância histórica e contribuiu de forma decisiva para a realização da primeira greve geral durante a ditadura militar. A FUP é fruto dessa greve, um movimento que não devemos esquecer nunca para continuarmos fazendo nossas lutas”, ressalta o coordenador da FUP, João Antônio de Moraes.

O golpe da mídia

“A imprensa foi arauto da trama golpista contra o presidente João Goulart. Sempre conservadores, os “barões da mídia” brasileira agem na fronteira do reacionarismo. Apoiar golpes, por isso, não chega a ser exatamente novidade. Alardeiam o princípio do liberalismo sem, no entanto, se comprometer com a democracia”. Maurício Dias, jornalista, editor especial e colunista de CartaCapital.
O Globo, 02 de abril de 1964: “Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares que os protegeram de seus inimigos. Este não foi um movimento partidário. Dele participaram todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais”.
Folha de S.Paulo, 22 de setembro de 1971: “Um governo sério, responsável, respeitável e com indiscutível apoio popular, está levando o Brasil pelos seguros caminhos do desenvolvimento com justiça social – realidade que nenhum brasileiro lúcido pode negar, e que o mundo todo reconhece e proclama”.
O império contra-ataca
“O golpe civil-militar de 1964 no Brasil deu inicio à implantação de ditaduras que constituiriam um círculo de terror como nunca a América Latina conhecera. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, com o inicio da Guerra Fria, os Estados Unidos promoveram no continente a Doutrina de Segurança Nacional, sua ideologia da luta “contra a subversão” que desembocaria na instauração desses regimes”. Emir Sader,

“Cada vez fica mais evidente a participação do governo norte-americano no golpe. Desde os anos 50, os Estados Unidos exigiam posições e pressionavam os governos brasileiros para que se alinhassem a Washington. Os EUA chegaram a planejar uma guerra civil, como a das duas Coreias, ou a do Vietnã, contando com o apoio de alguns membros das forças de segurança”. Rosa Cardoso, integrante da Comissão Nacional da Verdade.

As veias abertas da corrupção

“Esquece-se muito facilmente como a ditadura foi um dos períodos de maior corrupção do Brasil. Basta lembrar-se de casos como Capemi, Coroa-Brastel, Lutfalla, Baum-garten, Tucuruí, Banco Econômico, Transamazônica, Ponte Rio-Niterói, entre tantos outros. Eles demonstram a consolidação de um modus operandi na relação entre Estado e empresariado nacional que herdamos da ditadura”. Vladimir Safatle, Professor da Faculdade de Filosofia da USP e autor do livro “A esquerda que não teme dizer seu nome”.
“A corrupção não poupou a ditadura militar brasileira porque estava representada na própria natureza desse regime. Estava inscrita em sua estrutura de poder e no princípio de funcionamento de seu governo. Numa ditadura onde a lei degradou em arbítrio e o corpo político foi esvaziado de seu significado público, não cabia regra capaz de impedir a desmedida: havia privilégios, apropriação privada do que seria o bem público, impunidade e excessos”. Heloisa Maria Murgel Starling, professora de História da Universidade Federal de Minas Gerais e co-autora de “Corrupção: ensaios e críticas”.
Carta das Centrais Sindicais aos trabalhadores e ao povo brasileiro
Há 50 anos, antes do golpe militar de 31 de março de 1964, uma grande efervescência social, cultural e política impulsionava os movimentos sociais no Brasil e nas cidades e no campo cresciam as lutas e organizações populares, acompanhadas de um intenso e rico debate ideológico e cultural.
Este contexto fortaleceu organizações independentes como o CGT, Comando Geral dos Trabalhadores, as Ligas Camponesas e outras organizações nacionais e regionais como o PUA unindo ferroviários, marítimos e aeroviários e o Fórum Sindical de Debates na Baixada Santista, organizações envolvidas na luta pela reforma agrária, contra o imperialismo e por mais democracia política.
Naquele momento, a luta por um novo Brasil estampava-se na face de operários e camponeses, soldados e marinheiros, estudantes e intelectuais: era a expressão de um novo Brasil que queria nascer.
Há 50 anos, em 13 de Março, no grande comício da Central do Brasil, o presidente João Goulart, com o apoio de organizações sindicais e populares, anunciava sua disposição em encaminhar ao Congresso Nacional projetos para as reformas agrária e urbana; reforma tributária e concessão de voto aos analfabetos e os quadros inferiores das Forças Armadas, impedidos de votar e serem votados. Faziam parte das chamadas Reformas de Base que previam, ainda, projetos de lei para as reformas da educação e administrativa e medidas para um maior controle sobre o capital estrangeiro.
Há 50 anos, a crescente organização e ofensiva política da direita, do alto clero católico, de políticos conservadores, de setores militares da alta patente e setores empresariais, tiveram no comício da Central a senha para que as Forças Armadas, assediadas por estes setores patrocinados pelo imperialismo estadunidense, desencadeassem um golpe de Estado contra a democracia e a classe trabalhadora.  O golpe militar de 31 de Março de 1964 derrubou o governo constitucionalmente eleito de Jango e, logo de início, reprimiu a luta dos trabalhadores, interrompendo o nascimento de um novo Brasil.
Há 50 anos, a luta dos trabalhadores e do movimento sindical foi o principal alvo do golpe militar. Nos 21 anos de ditadura, centenas de sindicatos sofreram intervenções dos governos dos generais e milhares de sindicalistas e trabalhadores militantes, do campo e da cidade, foram ameaçados, perseguidos, presos, torturados e assassinados. A ditadura suprimiu, com base na violência institucionalizada, os direitos democráticos e civis e a prática do terror de Estado serviu à implantação de uma política econômica nociva aos trabalhadores e à nação brasileira, intensificando os lucros das empresas e o arrocho salarial, aprofundando a desigualdade social, a miséria e a violência.
Hoje, 50 anos depois do golpe, a sociedade brasileira se esforça para explicitar as atrocidades que a ditadura cometeu contra o povo brasileiro e, especialmente, contra os trabalhadores.
 Hoje, 50 anos depois do golpe e há 30 anos do fim do regime de 64, amplos setores da sociedade brasileira buscam liquidar as sequelas e a macabra herança da ditadura militar, com seu arsenal repressivo, ainda presentes na sociedade brasileira.
Hoje, 50 anos depois do golpe as Centrais Sindicais brasileiras, através de sua participação na Comissão Nacional da Verdade, vêm a público exigir do Estado, Verdade, Memória, Justiça e Reparação. Nesta Carta aos Trabalhadores e ao Povo Brasileiro, as Centrais, representando honrosamente suas categorias, recomendam que sejam buscados:
  • Identificação, julgamento e responsabilização de agentes públicos e civis envolvidos em perseguições e torturas.
  • Identificação das formas de colaboração pública e privada na repressão aos trabalhadores e ao movimento sindical.
  • Julgamento e reparação quando esta repressão for comprovada, mesmo quando prescritas na atual legislação brasileira.
  • Adoção de interpretação da Lei 6683/79 (Lei de Anistia) que seja compatível com a proteção e defesa dos DDHH.
  • Provimento de recursos de Estado para a execução de sentenças baseadas na Lei 10.559/02, (lei de Reparação) também provendo a Comissão de Anistia do MJ e outros órgãos relacionados, de recursos ao seu pleno funcionamento.
  • Identificação e supressão da legislação antidemocrática, antitrabalhista, antisindical e antisocial remanescente.
  • Promoção dos valores democráticos no ensino brasileiro e valorização de conteúdos curriculares que expressem o verdadeiro papel da classe trabalhadora na história do golpe de 64 e da ditadura militar.
  • Valorização da Memória das graves violações dos DDHH com ênfase na memória e verdade dos trabalhadores.
  • Abertura e concessão das indispensáveis condições que permitam o livre e eficiente acesso a todos os arquivos referentes ao período indicado no artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 88.
 SÃO BERNARDO DO CAMPO,  01 DE FEVEREIRO DE 2014