Reportagem mostra a resistência dos SUS contra os ataques durante os governos Temer e Bolsonaro. Sistema sobreviveu a tentativas de desmonte como corte de recursos e ameaças de privatização
Imprensa da CUT – Maior política pública de saúde e inclusão do mundo, o Sistema Único de Saúde sobreviveu a um dos períodos mais duros desde a sua criação. Após o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, o país mergulhou numa agenda de retrocesso e desmonte, comandada pelos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro–ambos alinhados ao receituário neoliberal e à lógica do Estado Mínimo.
Foi um ciclo que atingiu em cheio o direito universal à saúde. O SUS, que por décadas simbolizou a presença do Estado onde o mercado nunca quis chegar, tornou-se alvo de uma política que tratou a vida como custo e a saúde como mercadoria. Ainda assim, resistiu, sustentado por seus profissionais, gestores públicos e pela sociedade organizada que defende o direito à saúde como pilar da democracia brasileira.
Nesta terceira matéria jornalística da série especial sobre os 35 anos do SUS, vamos abordar esse período de barbárie e seus desdobramentos sob as batutas dos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, que impuseram, entre tantas outras coisas, ao maior sistema público de saúde do mundo uma política de cortes, desmonte institucional e privatização velada, comprometendo conquistas históricas e ampliando desigualdades.
Golpe e início do desmonte
O golpe parlamentar que afastou Dilma abriu espaço para um projeto de austeridade que “penalizou duramente o SUS”. A análise é de Mauri Bezerra, secretário-geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Seguridade Social (CNTSS/CUT),
“Programas essenciais foram descontinuados e o congelamento dos gastos públicos, imposto pela Emenda Constitucional 95, reduziu drasticamente os investimentos. Entre 2018 e 2022, as perdas somaram cerca de R$ 70 bilhões”, afirma o dirigente.
Durante o governo Michel Temer (2016–2018), a política social foi subordinada ao ajuste fiscal. Sob o argumento de “equilibrar as contas públicas”, cortaram-se recursos e paralisaram-se programas estratégicos. O então ministro da Saúde, Ricardo Barros, chegou a dizer que “não dá para dar tudo a todos” — frase que sintetizou a visão privatista de quem nunca enxergou o SUS como direito, mas como gasto.
O teto de gastos e o estrangulamento do SUS
A Emenda Constitucional 95, aprovada em 2016, foi o golpe mais duro contra o sistema. Ao congelar investimentos por 20 anos, transformou o piso constitucional — que garantia um mínimo obrigatório — em teto máximo de despesas.
Na prática, institucionalizou o subfinanciamento crônico do SUS e abriu caminho para a privatização disfarçada. Enquanto o sistema público era sufocado, o governo Temer defendia os chamados “planos de saúde populares”, com cobertura reduzida e controle regulatório frágil — proposta que ampliou a exclusão e aprofundou desigualdades no acesso à saúde.
Orçamento secreto e clientelismo político
Com o avanço do arrocho fiscal, o orçamento da saúde passou a depender das emendas parlamentares e do famigerado “orçamento secreto”, que em 2021 ultrapassou R$ 7 bilhões.
Os repasses deixaram de seguir critérios técnicos e passaram a obedecer interesses políticos e eleitorais, enquanto isenções fiscais aos planos privados, estimadas em R$ 25 bilhões por ano, permaneceram intactas.
O resultado foi um SUS financeiramente asfixiado e politicamente marginalizado, tratado como despesa e não como investimento social.
Bolsonaro e o colapso institucional da saúde
A chegada de Jair Bolsonaro ao poder, em 2019, aprofundou a destruição. O governo foi marcado pelo negacionismo científico, pela militarização do Ministério da Saúde e pela ausência total de planejamento — cenário agravado pela pandemia de Covid-19.
Durante a crise sanitária, o país teve quatro ministros da Saúde em dois anos, o que paralisou decisões estratégicas e gerou descoordenação institucional.
O general Eduardo Pazuello, sem qualquer experiência na área, conduziu o ministério durante o auge da pandemia, atrasando a compra de vacinas e promovendo medicamentos ineficazes. O resultado foi trágico: mais de 700 mil mortes, colapsos hospitalares e falta de oxigênio em várias cidades, como Manaus.
Mesmo diante da emergência, o governo manteve o teto de gastos e reduziu em R$ 22 bilhões o orçamento da saúde em 2021. Ao mesmo tempo, ampliou as emendas parlamentares, reforçando o caráter clientelista do financiamento.
Privatização disfarçada e ataques às instituições
O bolsonarismo manteve viva a tentativa de entregar o sistema ao mercado. O governo chegou a propor o “voucher saúde”, que permitiria contratar planos privados com recursos públicos — um projeto de privatização indireta do SUS.
Além disso, órgãos fundamentais como o Conselho Nacional de Saúde (CNS) e a Fiocruz sofreram ataques e tentativas de esvaziamento. Técnicos e pesquisadores foram substituídos por militares e aliados ideológicos, numa clara tentativa de desmontar a estrutura científica e técnica do Estado brasileiro.
Resistência e sobrevivência
Mesmo diante dos cortes e da desorganização institucional, o SUS resistiu. Foi o sistema público que garantiu a vacinação em massa, sustentou o atendimento hospitalar e evitou uma tragédia ainda maior.
“Se privatizassem o SUS, o poder ficaria concentrado nas mãos de poucos — como sempre defendeu a direita, que prega o Estado mínimo. Durante aqueles seis anos, o SUS até balançou, mas resistiu”, resume Josivania Ribeiro Cruz Souza, secretária de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora da CUT.
O Legado
Após anos de abandono e desmonte deliberado das políticas públicas, o Sistema Único de Saúde (SUS) saiu profundamente ferido do ciclo iniciado com o golpe de 2016 e agravado pela extrema direita. O período foi marcado pelo caos administrativo no Ministério da Saúde, pelo negacionismo científico e pelo pouco caso dos programas estratégicos como o Farmácia Popular, o Mais Médicos e o Programa Nacional de Imunizações.
A negligência dos governos Temer e Jair Bolsonaro custou vidas. A cobertura vacinal despencou, aumentou a mortalidade materna e infantil e o país assistiu ao retorno da fome e da desnutrição entre bebês.
Além disso, a política autoritária e o teto de gastos estrangularam o financiamento público, retirando bilhões do orçamento e submetendo o SUS a um colapso institucional. O descaso atingiu também os povos indígenas, com a desestruturação da Secretaria de Saúde Indígena e a tragédia humanitária entre os Yanomami, expressão extrema da omissão do Estado. Sem contar a negligência do governo Bolsonaro na época da pandemia.
Reconstrução
A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2022, marcou o início da reconstrução e da retomada democrática no campo da saúde. Com a criação do Grupo Técnico de Saúde durante a transição, o novo governo retomou o diálogo com a sociedade, diagnosticou as urgências e assegurou, por meio da PEC Emergencial, R$ 22,8 bilhões adicionais ao orçamento. O projeto do governo Lula para saúde visa fortalecer o SUS, recompor recursos, ampliar a cobertura vacinal, enfrentar desigualdades e recolocar o direito à saúde como prioridade do Estado. Tudo isso e mais serviços oferecidos pelo SUS, que poucas pessoas conhecem, serão tema da nossa quarta e última reportagem.
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