William Nozaki*
A Eletrobras atravessa mais uma forte tentativa de desmonte, a exemplo do que ocorreu ao longo dos anos 1990 e, como se sabe, culminou na crise energética e no apagão de 2001. As reformas neoliberais do governo FHC afetaram também o setor elétrico por meio de mudanças estruturais que visaram promover uma ampla liberalização. Primeiramente, buscou-se desverticalizar toda a cadeia de energia elétrica com dois grandes objetivos: i) aumentar a eficiência competitiva do setor e; ii) facilitar a entrada do setor privado por meio da transferência patrimonial das companhias estatais regionais.
A fim de atender esse objetivo, o governo FHC inseriu o setor elétrico no Plano Nacional de Desestatização (PND). A diretriz era permitir uma forte atuação do setor privado subordinada a um modelo de regulação setorial. As crises financeiras das empresas do setor, principalmente as regionais – que eram sustentadas financeiramente pela Eletrobras – legitimou a adoção dessa estratégia. Ou seja, a privatização se iniciaria pelas empresas estaduais que apresentaram situações financeiras mais fragilizadas.
Na realidade, a partir das privatizações das empresas estaduais o que se observou foi uma forte desorganização do setor com uma regulação ineficiente e ausência de investimentos para garantir o suprimento de energia elétrica para a população. Houve um ‘desmonte’ de equipes e processos de planejamento nas empresas federais e, principalmente na Eletrobras, que perdeu sua função organizadora do setor. Um dos erros mais grave foi a interrupção do processo de inventários de novos empreendimentos, deixando ao setor privado a realização desses estudos.
No período que antecede as reformas neoliberais, a forma de funcionamento integrada da Eletrobras foi crucial para a expansão dos investimentos e da operação da malha energética. Além de financiar boa parte dos gastos necessários à modernização e desenvolvimento, a Eletrobras tinha um papel fundamental na operação, execução de programas e planejamento do setor elétrico. Ao fragmentar e desverticalizar a empresa, houve uma forte desorganização setorial que, num cenário de risco hidrológico e ausência de chuvas, resultou na crise energética no início dos anos 2000.
A partir de 2003 estruturou-se uma nova política para o setor fortalecendo o papel da Eletrobras nas parcerias público-privada, articulando a atuação de novos atores estatais para garantir os investimentos e a operação do setor, bem como melhorando a regulação. A criação da EPE em 2004 foi fundamental para o resgate da responsabilidade constitucional do Estado em promover o desenvolvimento sustentável da infraestrutura energética do país.
O BNDES foi um ator fundamental para assegurar o financiamento do setor no longo prazo, por meio da garantia de recursos e gestão de um plano nacional e integrado de desenvolvimento da malha energética. Além disso, o governo Lula priorizou a segurança do abastecimento e a universalização do suprimento com modicidade tarifária. Com isso, manteve-se o intuito de atração da iniciativa privada ao setor, porém com a orientação da expansão a partir do planejamento indicativo integrado com modicidade tarifária.
A regulação do setor foi fortalecida, pois esse novo modelo tinha como linhas gerais a “competição pelo mercado” na geração e a regulação nos segmentos de transmissão e distribuição. Foram delimitados de forma mais clara dois ambientes separados para a contratação de energia: o Ambiente de Contratação Livre (ACL) e o Ambiente de Contratação Regulado (ACR). Essa definição foi importante, pois, no modelo anterior almejava-se a criação gradual de um mercado único totalmente liberalizado. Dadas as especificidades do mercado brasileiro em franca expansão, o novo modelo garantia a expansão via leilões no ACR, ao mesmo tempo em que, para melhor atender as demandas de grandes consumidores, dava opções de negócio para geradores no ACL. Houve também, por conta disto, a promoção de outro segmento da cadeia, o segmento da comercialização, que atuava apenas nas relações contratuais de compra e venda de energia no mercado liberalizado.
Com a crise financeira de 2008, o governo federal fortaleceu ainda mais o papel da Eletrobras com o objetivo de transforma-la numa grande corporação global do setor de energia elétrica. Inovações financeiras, novas parcerias globais e modernização da gestão foram considerados aspectos fundamentais para atingir deste objetivo. Além disso, a atuação da Eletrobras ficou concentrada na coordenação das demais empresas do grupo e na garantia de uma expansão nacional e internacional da operação do sistema de energia.
Esse modelo, portanto, apresentava uma forte distinção do projeto privatista do governo FHC. O papel financiador e coordenador do setor público, bem como a atuação regulada do setor privado teve duas funções primordiais: garantir o aumento da capacidade instalada alavancando investimentos, em especial via parcerias entre estatais e agentes privados; ampliar a competição dentro dos leilões, viabilizando o objetivo de modicidade tarifária.
A Eletrobras ganhou novo dinamismo até a crise atual, permitindo a expansão da malha energética e a redução de riscos para a atuação das empresas privadas em projetos que exigem financiamento de longo prazo e custos bastante elevados.
O sistema Eletrobras: o desmonte provocado pelos governos Temer e Bolsonaro
O governo Bolsonaro pretende viabilizar a venda da Eletrobras ainda em 2021. Trata-se de privatizar a principal responsável pela geração de energia e pelo investimento nesse setor no Brasil, com as subsidiárias Furnas, Chesf, Eletronorte e metade de Itaipu. O parque gerador da Eletrobras compõe-se de 48 usinas hidrelétricas, 12 termelétricas convencionais a óleo, carvão e gás natural, 62 centrais eólicas, uma central fotovoltaica e 2 usinas nucleares. A capacidade instalada desse parque é de 51.143 MW, o que a torna a maior geradora de energia elétrica da América Latina.
Cerca de 60% dos ativos de energia elétrica no Brasil já foram privatizados. No segmento de transmissão, 85% das linhas já estão sendo operadas por empresas privadas. Mesmo com este elevado grau de participação da iniciativa privada no setor, os planos de desinvestimento levados à cabo desde o golpe têm especial incidência no setor de energia. Das 31 empresas subsidiárias privatizadas, 21 pertencem ao setor energético, sendo 8 ligadas ao Sistema Petrobras e 13 ligadas ao Sistema Eletrobras. Desde 2016, foram vendidas a Amazonas Distribuidora de Energia (AM), Boa Vista Energia (RR), Eletroacre (AC), Cepisa (PI), Ceal (AL), Ceron (RO) e Celg-D (GO). Foram vendidas ainda as usinas hidrelétricas de São Simão, Jaguara, Miranda, Volta Grande, localizadas em Minas Gerais e Goiás.
A tentativa do governo Bolsonaro de privatizar a Eletrobras é similar a que ocorreu nos anos 1990 e que culminou na crise energética e no apagão de 2001 cujas causas foram acima descritas. O atual presidente da empresa afirmou que a Eletrobras não é eficiente em nenhuma das suas operações. Uma declaração tão forte obviamente não reflete as mudanças positivas da companhia nos últimos anos, mas apenas legitima a “velha” estratégia em curso.
De acordo com a Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras (AESEL), em 2018 a Eletrobras já havia apresentado lucro recorde de R$ 13,3 bilhões (lucro esse impactado por receitas não recorrentes, é verdade) e em 2019 a empresa apresentou um lucro de R$ 10,7 bilhões, lucro esse advindo basicamente das atividades operacionais da empresa. Além disso há que se destacar que a relação entre a dívida líquida e o EBITDA (lucro antes de juros, impostos e dividendos) é de 1,6 vezes, ou seja, a empresa está muito menos alavancada que as suas principais concorrentes privados. É bom ressaltar que esses resultados bastante positivos foram conquistados vendendo grande parte da energia no sistema de cotas, com preço muito abaixo do mercado e em um ambiente de estagnação econômica no país.
A situação da empresa só não é ainda mais favorável, pois, apenas em 2020 a Eletrobras injetou R$ 700 milhões no caixa do governo em forma de dividendos, e nos últimos 11 anos foram depositados no Tesouro Nacional cerca de R$ 16 bilhões.
No entanto, o que se observa até o momento é a repetição da estratégia de desmonte como fica claro no Plano Diretor de Negócios e Gestão (2017-2021) apresentado pela empresa. Novamente, o objetivo é fragmentar o sistema de energia e iniciar um amplo processo de privatização. Por isso, a primeira medida tomada a partir do golpe foi justamente acabar com as seis distribuidoras estaduais, incluindo-as no Programa de Parcerias e Investimentos (PPI). Nesse mesmo compasso, a empresa reduziu em 29% seus investimentos, de R$ 50,3 bilhões para R$ 35,8 bilhões.
Além disso, a empresa tem negociado as participações minoritárias da estatal. Atualmente são 178 participações diretas e indiretas em companhias do setor, como nas usinas de Belo Monte, Jirau e Teles Pires. O objetivo da empresa com esses negócios é levantar algo em torno de R$ 20 bilhões. Ademais, os acionistas da estatal aprovaram a venda de participação (51%) da Celg Distribuição.
A Eletrobras estabeleceu a privatização, a reestruturação dos negócios e a governança corporativa como prioridades estratégicas. O objetivo é circunscrever as atividades da empresa apenas na geração e transmissão de energia. As distribuidoras foram colocadas à venda e a administração dos fundos setoriais, que movimentam cerca de R$ 30 bilhões, passou a ser feita, definitivamente, pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), retirando da estatal a função de financiadora setorial.
Impactos sobre o preço da energia elétrica: modelagem, descotização e tarifa
As privatizações no setor elétrico tiveram início em 1995. Desde então, no segmento de geração, cuja capacidade total é de 145 GW, apenas 29% ficaram com o Estado, representado pela Eletrobras, com as subsidiárias Furnas, Chesf, Eletronorte e pela metade de Itaipu. No segmento de transmissão, o grupo Eletrobras controla 57 mil quilômetros de linhas, enquanto 584 mil quilômetros estão sob controle privado. No segmento de distribuição, as principais empresas também foram privatizadas.
O resultado desse processo, no que se refere a qualidade dos serviços, os consumidores têm enfrentado brutais aumentos na frequência e na duração dos cortes de energia. A energia elétrica é um monopólio natural no caso brasileiro dada a infraestrutura hidrelétrica e as grandes companhias geradoras, portanto, tarifas elétricas não devem ser formadas apenas no espaço privado, pois influenciam todos os custos da economia e constituem um privilegiado instrumento de arrecadação de parte da renda dos demais setores. A experiência mostra que investidores privados fazem despesas estritamente relacionadas com seus interesses, e relutam em realizar as demais atividades não lucrativas, como preservação ambiental, controle de enchentes etc. Na MP 1.031, o modelo envolverá a perda de controle da empresa pela União, que atualmente é de 68%. A negociação também irá abranger grandes hidrelétricas controladas por subsidiárias da estatal.
A lógica do “novo modelo” para a Eletrobras é perversa – para atrair investimentos privados, é necessário tornar a empresa “atrativa” para o capital privado, principalmente para os investidores internacionais. A privatização e a imposição de um novo modelo deverão incluir a desobrigação das empresas geradoras como a Eletrobras de manter os preços de energia mais baixos nos valores contratados, a chamada “descotização”.
Com essa medida, vai haver o aumento imediato das tarifas, principalmente para os pequenos empresários e o consumidor residencial. Além disso, a alienação de ativos já amortizados, mas remunerados por preço de mercado (descotização), será um desestímulo à construção de novas usinas.
A energia gerada pelas usinas da Eletrobras hoje, mantida no regime de “cotas”, representa aproximadamente 15% do total de energia elétrica gerada no país e o seu preço é menos de 1/4 do preço praticado no mercado. Com a “descotização”, o atual governo pretende simplesmente liberar as geradoras para vender essa energia – parcial ou integralmente – para outros compradores, como comercializadoras ou grandes consumidores industriais, por um preço mais elevado, fazendo com que os preços da energia atualmente vendida pelo sistema de cotas se aproximem daqueles vigentes hoje no mercado livre.
Segundo a Aneel, as hidrelétricas da Eletrobras no regime de cotas têm custo de energia de cerca de R$ 40 por megawatt-hora. Se considerados custos com uma menor geração em períodos de reservatórios baixos, o chamado “risco hidrológico”, o custo para o consumidor pode chegar a R$ 75 por megawatt-hora. De acordo com estudos do setor, se todas as hidrelétricas da Eletrobras forem “descotizadas” de uma só vez, e essa energia for comercializada pelo valor de R$ 200 por megawatt-hora, conforme estimado pelo próprio MME, o impacto anual pode chegar a R$ 13,2 bilhões (com impostos). Considerando o período de contrato de 30 anos praticado no setor, o consumidor de energia seria onerado em R$ 396 bilhões nesse período. De acordo com a AESEL, a tarifa de energia elétrica para os consumidores pode aumentar aproximadamente 14%.
O governo, no entanto, insiste na tese de que a privatização diminuirá o custo final da tarifa de energia, mesmo propondo que essa “descotização” signifique custos extras aos consumidores e esteja ainda condicionada ao pagamento de bonificação pela descontratação da energia.
Impactos em programas da Eletrobras: Luz para Todos, Cepel e Procel
A política de desmanche da Eletrobras implementada pelo governo Bolsonaro coloca em questão a eficiência de todo o setor de energia elétrica. A atual gestão da Eletrobras decidiu que a estatal não tem mais obrigação em investir e manter o Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica (Procel) e o Programa Nacional de Universalização do Acesso e Uso da Energia Elétrica (Luz para Todos), nem de manter o Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (Cepel), o maior centro de pesquisas de energia elétrica da América do Sul.
Criado em 2003 pelo presidente Lula, o programa Luz para Todos atendeu 16,8 milhões de pessoas, que passaram a ter acesso à energia elétrica em regiões até então sem cobertura desse serviço público essencial. Além do acesso à energia, o programa movimentou a economia e gerou quase meio milhão de empregos diretos e indiretos, ao utilizar 7,9 milhões de postes, 1,15 milhão de transformadores e 1,5 milhão de quilômetros de cabos elétricos (o suficiente para 38 voltas ao redor da Terra). Além do impulso ao setor de materiais elétricos, o programa beneficiou também a indústria e o comércio de eletrodomésticos, entre outros. Tal iniciativa só foi viável por meio de um regime de subsídios cruzados que não são viáveis depois da privatização.
Tudo isso pode virar pó, pois o texto do novo estatuto da Eletrobras estabelece que, se a União determinar investimentos em programas de governo por parte da empresa, ela deverá ser ressarcida pelos cofres públicos. Além de extinguir o Luz para Todos, esta decisão afronta o artigo 173 da Constituição, que estabelece que os interesses coletivos e sociais são funções primárias de empresas estatais.
O Cepel (Centro de Pesquisa em Energia Elétrica), por seu turno, atua há mais de 45 anos em vários temas estratégicos para o país como energias renováveis, eficiência energética e novas tecnologias, atendendo as empresas Eletrobras e do setor elétrico nacional. O centro trabalha em parceria com universidades, desenvolvendo recursos humanos qualificados em toda cadeia produtiva do setor elétrico.
O Cepel é uma pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos, constituído sob a forma de associação civil. Aproximadamente 80% de seus recursos são provenientes das fundadoras do centro, a Eletrobras e suas quatro controladas, Furnas, Chesf, Eletronorte e Eletrosul, e o restante oriundo de outras empresas associadas e de ensaios laboratoriais, projetos de pesquisa e serviços tecnológicos prestados a agentes do setor elétrico.
O desmonte da Eletrobras visando a privatização da empresa é visto com preocupação pelos pesquisadores do Cepel, pois o Centro é responsável pelo desenvolvimento de softwares que controlam a distribuição de energia em todo o país. Como o Brasil tem um dos maiores sistemas de energia interligado do mundo, é o equilíbrio da distribuição que permite atender todo o território nacional, já que os grandes centros do país ficam, em sua maioria, distantes das principais fontes de geração tanto hidrelétrica quanto eólica.
Outra área importante em que o Cepel atua é a do desenvolvimento com ensaios para a indústria em geral e para o setor elétrico. O Centro faz testes com grandes transformadores de energia, para dar maior confiabilidade às estações de energia e linhas de transmissão, evitando perdas, para que as tarifas sejam menores. Segundo engenheiros da Eletrobras, se um sistema de monitoramento do tipo desenvolvido pelo Cepel estivesse instalado nos transformadores da subestação do Amapá, o apagão de 22 dias poderia ter sido evitado. A companhia espanhola Isolux, que operava na região, havia entrado em recuperação judicial em 2016. Depois desse processo, a empresa mudou de nome e passou a atuar como Gemini Energy, sendo a responsável, desde janeiro de 2020, por 85,04% das linhas de transmissão da subestação em que houve o problema com o transformador, enquanto 14,96% ficam a cargo da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). O apagão chama a atenção do país para as contradições do modelo privatizante, que é constantemente associado por adeptos do neoliberalismo a uma gestão mais eficiente das empresas. No entanto, as privatizações no setor elétrico têm resultado em apagões sistemáticos, como ocorreu no início da década de 2000 e se repete atualmente.
Se a privatização já implica riscos ao Cepel, a decisão dos acionistas que desobriga a Eletrobras a investir no Cepel é ainda pior. Isto porque a mudança estatutária terá efeitos imediatos, enquanto o projeto de privatização ao menos prevê quatro anos de investimentos obrigatórios no Centro de Pesquisas após a venda da estatal.
Além disso, criado em 1985 pelo governo federal e executado pela Eletrobras, o Procel é voltado para o aumento da eficiência de equipamentos e serviços, para a disseminação de conhecimento sobre o uso eficiente da energia e para a adoção de hábitos de consumo mais conscientes. O “selo Procel” de eficiência, encontrado em eletrodomésticos vendidos no mercado, é a face mais conhecida deste programa que contribui para postergar investimentos no setor elétrico, reduzir emissões de gases de efeito estufa e mitigar impactos ambientais, colaborando para um mundo mais sustentável.
O Procel também está sob ameaça a partir das alterações propostas para o estatuto da Eletrobras. Ao desobrigar a Eletrobras de investir no programa, perdem o setor elétrico, os consumidores e o meio ambiente. Sem a Eletrobras operando como empresa estatal, o setor privado sozinho não tem condições de assegurar a segurança energética do país.
* Economista, sociólogo, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política e coordenador do mestrado Estado, Governo e Políticas Públicas (FLACSO-FPA). [Artigo publicado originalmente no Le Monde Diplomatique.]