Rodrigo Leão**
O primeiro pacote de sanções dos Estados Unidos e de seus aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) foi uma tentativa de estrangulamento do sistema financeiro da Rússia. Esses países cortaram o acesso dos dois maiores bancos russos ao dólar e baniram algumas instituições financeiras do sistema Swift. Além disso, os governos dos EUA e da União Europeia congelaram os ativos russos denominados em dólar e em euro, impossibilitando o acesso do Banco Central do país às suas reservas internacionais. “No total, quase US$ 1 trilhão em ativos russos foram congelados por sanções”, garantiu o Ministro das Finanças da França, Bruno Le Maire.
A expectativa do Ocidente, muito provavelmente, era aniquilar economicamente a Rússia, obrigando o país a rever sua ofensiva contra Ucrânia. Apesar dos efeitos dramáticos materializados na corrida bancária, na forte desvalorização do rublo e na fuga de capitais, a Rússia tem demonstrado uma capacidade de resistência estendendo os ataques à Ucrânia.
O aumento do preço do Brent mostra que a guerra econômica promovida contra a Rússia está chegando ao Ocidente. Isso pode significar uma certa escassez de oferta para o Ocidente, dificuldade de escoamento e venda do petróleo russo, ou a imobilização da Opep Neste momento, o que começa a ocorrer é que a extensão da crise econômica na Rússia pode transbordar de maneira intensa no Ocidente, principalmente na Europa. Isto é o retrato de um novo desenho geoeconômico que traz duas novidades importantes.
De um lado, a importância russa no mercado de commodities globais, em especial o de energia, pode prejudicar severamente o continente europeu. E de outro, as interconexões da Rússia com a Ásia, principalmente com a China, colocam Putin numa posição mais fortalecida globalmente.
Qualquer tentativa de estender as sanções para o mercado de commodities russo pode gerar uma grave crise de abastecimento de produtos importantes, como cobre, alumínio e paládio. “Possíveis atrasos na entrega desses produtos poderiam desestimular as cadeias de fornecimento de conversores catalíticos em automóveis, capacitores usados em telefones celulares e até mesmo coroas dentárias”, advertiu Jon Hilsenrath, do Wall Street Journal.
No caso da Europa, há ainda um agravante: a possibilidade de um desabastecimento energético. Atualmente, a Rússia responde por cerca de 25% do petróleo e de 40% do gás vendido ao continente. E, mais grave, o caminho para reduzir a dependência do gás russo é bastante intrincado.
Primeiro, porque com a decisão da Opep de não elevar sua produção e devido ao fato de os grandes exportadores de gás natural liquefeito (GNL), a Austrália e os EUA, principalmente, estarem no limite da sua capacidade de produção, fica inviável a substituição do gás de origem russa. Segundo, porque a possibilidade de utilizar outras fontes de energia está mais escassa. A disponibilidade de energia nuclear, por exemplo, se reduziu nos últimos anos na Alemanha, Grã-Bretanha e França, em razão do envelhecimento das usinas, dos processos de descomissionamento e da redução gradual da capacidade de produção.
Desde a guerra da Geórgia em 2008, a Rússia tem trabalhado em estreitar suas relações com os países integrantes da Opep e da Ásia, visando reduzir sua dependência econômica do Ocidente. Lideradas pela China, as exportações para os países da Apec (Asia-Pacific Economic Cooperation) cresceram de 11,8% em 2006 para 30,2% em 2020. As importações saltaram de 24,2% para 38,9% no mesmo período. Desde 2014, a China superou a Alemanha em projetos de investimento de longo prazo na Rússia.
Naquele ano, russos e chineses anunciaram a construção de um mega-gasoduto conectando a Sibéria ao norte da China. O chamado “acordo do século” entre o grupo Gazprom, da Rússia, e a Corporação Nacional de Petróleo da China, é resultado de um investimento de US$ 55 bilhões.
Em 2019, os russos realizaram uma grande parceria com o Japão para investir no projeto do terminal de GNL “Arctic 2” desenvolvido pela gigante russa Novatek. As companhias japonesas, Mitsui & Co. e a Japan Oil, Gas and Metals National Corporation concordaram em aplicar US$ 3 bilhões no projeto para obter participação de 10% do negócio. Esse é apenas um dos projetos de GNL da Rússia, que visa ampliar sua participação nesse segmento para atender os mercados asiáticos.
Além da Ásia, a Rússia iniciou uma aproximação com o setor energético da Opep. Em 2017, o país liderou um movimento para que outros grandes produtores de petróleo compusessem o grupo conhecido como Opep+. A Rússia e mais nove grandes exportadores de petróleo alinharam-se ao bloco para aumentar seu poder de barganha, ainda que sem se tornarem membros oficiais da Opep.
Naquele mesmo ano, a Rússia assinou um acordo estratégico com a Arábia Saudita. No campo energético, foram fechados negócios para criação de dois fundos comuns de investimento no domínio energético e de tecnologia, por US$ 1 bilhão cada.
Exemplo da força dessa aproximação é que chineses e árabes têm se negado a promover sanções ao governo russo e a pressionar sua indústria energética. Essa aproximação com a Opep e a Ásia, somada à dependência energética europeia já começa a refletir no mercado de petróleo.
Nos últimos dias, o aumento do preço do Brent mostra que a guerra econômica promovida contra a Rússia está chegando ao Ocidente. Enquanto o barril do tipo Brent disparou na última semana (aumento de 17%), o petróleo da Sibéria, o ESPO, caiu 1% e o petróleo dos EAU, o Dubai, aumentou apenas 1%. Isso pode significar, ao mesmo tempo, uma certa escassez de oferta para o Ocidente, a dificuldade de escoamento e venda do petróleo russo, bem como uma imobilização da Opep.
Apesar desses sinais de estresse no mercado petrolífero, a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, declarou, no dia 02 de março, que sanções ao petróleo russo estão “certamente em cima da mesa”.
Isso significará uma escalada sem precedentes da guerra econômica promovida pelos EUA. Caso ela se efetive e chegue ao mercado de commodities, o “sangramento” não se limitará à economia russa, mas atingirá fortemente os aliados europeus da Otan.
* Artigo publicado originalmente na edição de 04/03/22 do jornal Valor. ** Economista e coordenador técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep).