[INEEP] Nos últimos anos, os sistemas energéticos mundiais vêm atravessando um processo de transição, no sentido de tornarem suas matrizes energéticas cada vez mais renováveis e limpas. Esse processo de caráter global levou diversos países a adotarem medidas direcionadas à descarbonização, tanto em nível de oferta, quanto de demanda, a citar o aumento da participação de energias renováveis intermitentes, a redução da participação de combustíveis fósseis, o estímulo ao desenvolvimento de tecnologias que permitam a redução das emissões de gases potencializadores do efeito estufa (GEE) nos processos produtivos e a adoção de mecanismos de taxação de produtos que contenham altos índices de pegada de carbono.
Historicamente, a União Europeia (UE) vem liderando esse processo. Ainda esse ano, o bloco europeu assinou o pacote legislativo Fit for 55, no qual assume o compromisso de reduzir em 55% as emissões de GEE até 2030. Dentre os projetos do pacote, cita-se a revisão do Sistema de Comércio de Emissões da União Europeia (EU ETS), incorporando os setores de edifícios e transporte rodoviário. Ressalta-se que as grandes empresas petrolíferas também vêm seguindo esta tendência de transição, aumentando os investimentos em energias renováveis e tecnologias de captura, armazenamento e uso de carbono (CCUS). Nesse processo, à medida que combustíveis como o carvão e a energia nuclear são substituídos, o gás natural é percebido como um recurso ponte para as energias verdes, já que emite menos GEE.
Atualmente, o crescimento da demanda energética, em função da retomada da economia pós-pandemia, vem contribuindo para o desequilíbrio entre a oferta e demanda dos combustíveis fósseis. Tendo em vista que a maior parte do suprimento de energia dos países ainda advém destes combustíveis, via de regra, o preço final da eletricidade é definido pelo preço do carvão ou gás natural. Desta forma, o aumento do preço destes combustíveis implica no aumento do preço da eletricidade. Países como a Alemanha, França, Itália e Reino Unido registraram aumentos que atingiram até quatro vezes mais os verificados em 2020.
Além da questão da demanda, outros fatores externos e geopolíticos, como o surgimento de eventos climáticos extremos, o esgotamento dos estoques de gás natural regionais, a redução da velocidade do vento em algumas regiões e as interrupções na cadeia de suprimentos, vêm consolidando um cenário de grande crise energética na Europa. Diante da redução da produção doméstica de gás natural e esgotamento de suas reservas de estoques, a UE vem ofertando altos lances para importações.
Atualmente, a Rússia é o segundo maior produtor de gás natural mundial e o maior exportador de gás natural da EU e do mundo, sendo responsável por um terço do volume importado pelo continente europeu. Em 2009, a Rússia deu início à exportação do gás natural em seu estado liquefeito (GNL) através do projeto Sakhalin-2. Desde então, o volume de exportações mais que quadruplicou. Em 2019, foi lançado o gasoduto Força Sibéria e o governo espera concluir a implementação dos gasodutos Nord Stream 2 e o TurkStream, transportando gás natural para a Alemanha e Turquia, respectivamente.
A redução dos estoques regionais de gás vem fomentando uma competição global por GNL. A rede de gasodutos entre a Europa e Rússia, apesar de extensa, está em grande parte inativa, sendo em sua maioria realizada através da Polônia e Ucrânia. Todavia, neste momento, a Rússia vem se mostrando resistente ao envio de volume de gás adicional através da Ucrânia e alguns especialistas do setor apontam a possibilidade de uma manobra geopolítica, a fim de forçar a aprovação da Alemanha do Nord Stream 2. O projeto, que já se encontra concluído mas ainda não entrou em operação, recebeu fortes críticas do bloco europeu e de outros países. Embora contratos de longo prazo com as empresas de gás russas possam aliviar o mercado europeu, esta não é uma decisão geopolítica simples.
Em linhas gerais, os exportadores de gás natural, como a Rússia e Catar, tendem a priorizar o mercado do leste asiático, haja vista que os preços são mais altos nessa região. Além disso, houve um aumento de demanda do mercado asiático, em especial da China, em virtude da diminuição da produção de carvão, reduzindo a oferta global e prejudicando a reposição dos estoques de gás europeu. Situação que se torna ainda mais grave com a proximidade do inverno, período em que o consumo de gás é maior em função do aquecimento residencial.
Outro ponto que contribuiu com o aumento do gás foi o crescimento do preço das licenças para cada unidade de carbono emitida, no EU ETS, o maior mercado de carbono do mundo. Enquanto, em março de 2020, os preços se encontravam em torno de € 20 por tonelada, em setembro deste ano passou para mais de € 60 por tonelada. O aumento significativo destas licenças tende a se refletir nos usuários finais, principalmente, nos países com grande participação de carvão em suas matrizes energéticas.
De forma, geral, as estratégias de neutralidade de carbono da UE fizeram com que grande parte dos estados membros reduzisse acordos de compra de longo prazo, optando pela adoção de preços de curto prazo. Com a disparada do preço do petróleo e do gás natural, concessionárias de energia e consumidores começaram a buscar outros combustíveis alternativos, como inclusive o carvão, rompendo com as diretrizes europeias de neutralidade de carbono. O Reino Unido, a França e a Espanha emitiram novos tetos de preços e a França anunciou investimento de 1 bilhão de euros em energia nuclear até 2030. Diversos países também passaram a adotar medidas temporárias para auxiliar os consumidores no período de crise de preços, como o apoio direto à renda para famílias vulneráveis, a redução de impostos e o auxílio para empresas em situação de dificuldade.
Posto isto, a crise energética na Europa nos evidencia a grande dependência dos combustíveis fósseis, colocando a transição energética como um processo não trivial e que depende de uma série de determinantes financeiros, tecnológicos, geopolíticos e de seus efeitos multiescalares. Além disso, a forte expansão em energias intermitentes mostrou os riscos da volatilidade de preços da energia e a instabilidade do atual mercado, haja vista a indisponibilidade de gás para a Europa, forçando uma busca por alternativas que ferem justamente os propósitos da transição energética.
Percebe-se, assim, que o fio condutor da estrutura dos sistemas energéticos não é rompido com o processo de transição. Novas fontes energéticas podem ser exploradas, mas as motivações e a lógica permanecem inalteradas, conduzindo à manutenção dos mesmos desdobramentos: crise energética. Nesse sentido a transição, da forma como é conduzida e impulsionada, mostra suas incertezas e complexidades, sendo natural que sejam observados, ao longo do tempo, “idas e vindas” na mudança da matriz energética, a depender da forma como a substituição das energias fósseis influenciam os atores envolvidos. Por fim, a crise energética atual também mostra os efeitos sociais das mudanças da matriz energética, a partir do momento que permanece impactando os grupos mais vulneráveis.
Fontes:
1. A Perfect Storm: Understanding the European Energy Crisis. Disponível em: https://www.leveltenenergy.com/post/europe-energy-crisis
2. The New York Times. An Electricity Crisis Complicates the Climate Crisis in Europe. Disponível em: https://www.nytimes.com/2021/10/29/climate/europe-energy-crisis-cop.html?smid=em-share
Europe’s Self-Inflicted Energy Crisis
3. FORBES. Ariel Cohen. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/arielcohen/2021/10/14/europes-self-inflicted-energy-crisis/?sh=6671bcf72af3
4. SPGLOBAL. Disponível em: https://www.spglobal.com/en/research-insights/featured/europe-energy-crisis
5. EURONEWS. Why Europe’s energy prices are soaring and could get much worse. Disponível em: https://www.euronews.com/2021/10/28/why-europe-s-energy-prices-are-soaring-and-could-get-much-worse
Artigo publicado originalmente na EPBR.