Editorial do Nascente: Brasil namora perigosamente com nova ditadura

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A imprensa está negligenciando, quando não apoiando. Setores conservadores, mas que se dizem democráticos, estão fazendo de conta que não estão vendo. As famílias tradicionais da classe média e alta oscilam da indiferença à solidariedade aos aparatos repressores. Mas é fato, está acontecendo, com evidências cada vez mais nítidas a cada dia: o Brasil namora perigosamente com o restabelecimento de uma ditadura.

O cenário guarda inúmeras semelhanças com o pós 1964. Sob a justificativa de que a derrubada de Jango estava protegendo o País de uma ditadura comunista, foi aberto o campo propício para o estabelecimento de uma sequência cada vez maior de restrições à liberdade, que atingiu o ápice com o AI-5 em 1968. Antes disso, muitos se fizeram de desentendidos. Afinal, era com os outros, com os esquerdopatas, não era com eles. Precisou que alguns filhos da classe média começassem a também desaparecer para que a elite percebesse o obscurantismo em que metera o País.

As restrições da comunicação na Petrobrás, nesta semana, revertidas em parte em razão da atuação sindical, são sintomas deste cenário maior. É verdade que esta não é a primeira vez que a empresa adota atitude semelhante às vésperas de uma greve, mas chama atenção o modo desabrido, oficial, institucional como foi feito — antes, a gestão da companhia tinha algum constrangimento em fazê-lo, e até mesmo recorrentemente negava ter tomado a decisão, atribuindo o corte na internet, por exemplo, a “problemas técnicos”.

Perderam a vergonha de serem o que são: ditadores. E há uma razão simples para isso: perceberam que o que vem de cima é este tipo de orientação e exemplo. O negócio é “não dar moleza” para os movimentos sindicais e sociais.

Por isso, ocorrem casos como o de Cabiúnas, também nesta semana, quando seguranças impediram o acesso de diretores do Sindipetro-NF à recepção da base, barrando-os em portão anterior às catracas, onde pretendiam apenas tomar água no bebedouro. Um dos seguranças fala em trazer um recipiente de água até o lado de fora, talvez não se dando conta do absurdo e da desumanidade contida nesta oferta, que apenas reforçaria o traço de diferenciação, segregação e estigmatização do sindicalista. É a banalização do mal, para lembrar um conceito de Hannah Arendt sobre o modo como os soldados e a sociedade alemã foram incorporando com naturalidade ordens nazistas cada vez mais absurdas.

A situação foi tão grotesca que, após aproximadamente uma hora de tensão, e também de reação do sindicato, inclusive com a mobilização de forte aparato policial pela empresa, algum coordenador da segurança teve o bom senso de fazer o óbvio: permitir a entrada dos sindicalistas para fazer o que precisavam desde o início: beber água. Ainda assim, não satisfeita, a mesma gerência impediu, dias depois, que um diretor do NF almoçasse no restaurante do terminal, quando participava de uma reunião de Cipa.

Recentemente o sindicato publicou discretamente (Curtas, Nascente 953), mas de modo preocupante, as “visitas” suspeitas de homens que se identificaram como policiais à paisana às suas sedes de Campos e de Macaé. A entidade registrou ocorrência sobre o caso, ainda em curso.

Centenas de sindicatos e demais entidades estão passando por experiências semelhantes País afora. Para ficarmos em mais um exemplo, desta vez fora da categoria petroleira: uma decisão de um juiz do Distrito Federal escandalizou, ou deveria escandalizar, qualquer um que se proclame defensor da democracia. Em mandado expedido no último dia 30, Alex Costa de Oliveira, autorizou a ação policial para a desocupação de uma escola por meio da utilização de “meios de restrição à habitabilidade do imóvel”, como “corte no fornecimento de água, energia e gás”. O magistrado também autorizou a restrição de “acesso de terceiros, em especial parentes e conhecidos dos ocupantes”, assim como a entrada de alimentos. 

Como se não bastasse, com requinte de crueldade que lembra a ação de torturadores, autorizou “o uso de instrumentos sonoros contínuos, direcionados ao local da ocupação, para impedir o sono”. Tudo isso, a despeito de ser juiz da Vara da Infância e Juventude, “independentemente da presença de menores ocupantes no local”.

A democracia, em larga medida, mesmo se nos fixarmos em parâmetros liberais — nem estamos falando, portanto, de qualquer utopia —, depende que governantes encontrem freios eficazes aos seus impulsos autoritários, seja do legislativo, seja do judiciário, seja da imprensa ou da sociedade. Neste momento, todas estas forças estão dominadas por uma sanha persecutória que as tornaram cegas para o que está claro apenas para vítimas e algozes diretos. Que a descoberta acerca da profundidade deste poço obscurantista não seja tarde demais.

 

[Outros textos da edição 964 do Nascente, aqui]