Editorial do Nascente: Não era só mais um Silva

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Ele estava na véspera da folga. Desembarcaria no dia seguinte. Seria recebido pela família naquela parte do mar que é acalmada pela areia, na praia de Marataízes, no Espírito Santo. Bem longe daquela outra que é só horizonte e “ilhas de ferro” ao alcance da vista, onde estava há 14 dias.

Para os burocratas, só mais um Silva, ou menos que isso, uma matrícula no contracheque. Sandro Ferreira da Silva, 43 anos, funcionário de uma empresa de nome fúnebre: RIP (Descanse em paz, em latim).

Os indiferentes dirão “vida que segue”. A deles, diga-se. Ou, se não indiferentes, mas cínicos, dirão “todo dia morre alguém”. Não foram eles, claro.

Mas a morte deixa de ser uma sequência natural e aceitável da vida quando ela flerta tão intimamente com o descaso. Viver é nossa tarefa essencial, e isso nunca foi uma missão individual. É coletiva. O fato de nos preocuparmos uns com os outros é que nos trouxe até aqui como espécie.

A morte de Sandro, na PNA-2, no último domingo, vítima de acidente de trabalho, é mais uma daquelas que provavelmente não poderão ser atribuídas a uma “fatalidade”. As investigações, das quais participará o coordenador geral do Sindipetro-NF, Tezeu Bezerra, como representante da entidade na comissão, hão de mostrar que aquele instante último poderia ter sido evitado se a segurança no trabalho fosse realmente prioridade entre os gestores. E isso é fácil de prever pelo simples motivo de que sempre é assim no mundo do trabalho, quando se leva a sério a investigação e não se tenta, como inúmeras vezes ocorreu, colocar a culpa na vítima.

Toda tragédia é precedida de uma sequência de avisos, que por sua vez são sintomas de uma série de decisões erradas. Podem ser economias sórdidas com pessoal, podem ser pressões exageradas por produtividade, podem ser treinamentos mal feitos ou deixados de fazer. As causas variam e nunca estão ao alcance do controle solitário da vítima final.

O Silva de Marataízes se foi. Muitos choram a sua partida e este final de ano não será o mesmo entre os seus e entre nós. Os burocratas fingem não ter manchas de sangue nas mãos. Aos que ainda têm coração resta conservar a subversão incômoda da sua memória e, independentemente do sobrenome que tenham, saberem ser Silvas também.

[Nascente 1068]