Leonardo Boff*
Especialmente a partir de 2023, a Terra foi tomada por grandes ondas de calor que provocaram megaincêndios em muitas partes do mundo. Em 2024, os mais devastadores ocorreram no Brasil, na parte da Amazônia, no Pantanal, no Cerrado e em vários municípios do Sudeste. A fumaça tornou o ar em São Paulo e em Brasília quase irrespirável. A fumaça se espalhou por quase todo o sul do país. Os cientistas têm chamado esta difusão de fogo por quase todo o planeta, de era do fogo, o piroceno (piros, em grego, é fogo).
Só em 2023 foram emitidas na atmosfera 37,5 bilhões de toneladas de CO₂ que permanecem por lá cerca de cem anos. Desde a era pré-industrial (1850-1900) são lançadas na atmosfera bilhões de toneladas de gases de efeito estufa, atingindo ao todo mais de dois trilhões de toneladas acumuladas.
O fogo possui longa história. Pensando na biografia da Terra, de 4,5 bilhões de anos, sabe-se que, por 800 milhões de anos, o planeta permaneceu como uma incomensurável bolha de fogo, derretida como uma sopa grossa borbulhando de calor. Era um imenso mar de lava em fusão e extremamente quente.
A lava endureceu e fez surgir o primeiro solo com todo tipo de montanhas. O fogo original foi aninhar-se no coração da Terra em forma fluida que se mostra pelas erupções vulcânicas e pelos tremores de terra. Mas continuou como uma energia fundamental na superfície.
O atual aquecimento global, que ultrapassou o projetado 1,5 graus Celsius para 2030, se antecipou, chegando em alguns lugares a 2 e até 3 graus Celsius. “Estou apavorado”, disse nosso melhor cientista em clima Carlos Nobre. A causa deste aquecimento constitui a forma como nos últimos séculos o processo produtivista-industrialista tratou a Terra. Era considerada sem nenhum propósito, mero baú de recursos à disposição dos seres humanos. Podemos dizer que se moveu uma verdadeira guerra contra a Terra arrancando dela tudo o que se podia.
Ocorre que, a partir dos anos 1970, com as pesquisas das ciências da Terra e da vida, os cientistas James Lovelock e Lynn Margulis aventaram a hipótese de ser a Terra um super ente vivo que articula sistemicamente todos os elementos essenciais à vida de tal forma que sempre se mantém viva e produz inumeráveis formas de vida: a biodiversidade. Denominaram-na Gaia, um dos nomes gregos para a Terra, hoje vastamente acolhida pela comunidade científica.
Entretanto, o sistema produtivista, seja na ordem capitalista, seja na antiga socialista, estava e ainda está de tal maneira azeitado que não se permite parar. As consequências se fizeram sentir cedo, mas especialmente a partir dos anos de 1970: emissão incontrolada de gases de efeito estufa, degradação dos ecossistemas, erosão da biodiversidade, desertificação crescente, desmatamento de grandes florestas, contaminação dos solos e da água com agentes tóxicos.
Essa guerra movida pelo processo produtivo (produzir, consumir, descartar) contra Gaia representa uma batalha perdida. O sistema-vida, dada a degradação geral, o aumento de CO₂ e metano na atmosfera, o aquecimento tido por irreversível com seus eventos extremos, a perversa desigualdade social despertaram a consciência em muitos: ou mudamos nosso estilo de vida e nossa relação para com a natureza ou podemos não sermos mais queridos pela Mãe Terra.
Geralmente, quando num ecossistema uma espécie se desenvolve de forma desregulada a ponto de ameaçar as demais, a própria Terra se organiza de tal forma que o limita ou o elimina. Destarte, as demais espécies podem subsistir e continuar a co-evoluir no processo global da geo gênese. Talvez seja esta a atual situação da espécie humana, na era do antropoceno, apesar de a grande maioria ser ainda inconsciente e negacionista.
A expressão criada por cientistas, o antropoceno, designaria o ser humano qual meteoro rasante é o que mais ameaça a biosfera. Ao invés de assumir-se como seu cuidador, fez-se seu anjo exterminador. O piroceno seria a forma mais perigosa e destrutiva do antropoceno.
O aquecimento global crescente, favorecendo a difusão incontrolada do fogo e as mega queimadas, pode tornar o planeta inabitável. A escassez aguda de água potável, a frustração da produção de alimentos, o clima super-aquecido levaria lentamente a espécie humana à sua extinção.
Como tudo o que começa na evolução, se desenvolve, chega ao seu clímax e desaparece. Assim é com as galáxias, as estrelas e os seres vivos. Por que seria diferente com a espécie humana? Irrompemos na Terra quando 99,98% estava já constituído.
A Terra não precisou de nossa presença para gestar sua imensa biodiversidade. Sem nós, os quatrilhões de quatrilhões de micro-organismos que trabalham no sub-solo do planeta levariam avante o projeto da vida. A Terra continuaria a girar ao redor do sol, sob sua luz benfazeja, mas sem nós.
Aqueles que ousam dar o salto da fé, diriam que apenas a etapa terrestre do ser humano foi irresponsavelmente concluída. Uma nova se iniciaria num outro nível. Depois do tempo vem a eternidade. Nela continuaria a viver numa forma que para nós continua inefável. Mas a vida se perpetuaria.
*Leonardo Boff escreveu entre outros o livro Cuidar da Terra: pistas para protelar o fim do mundo, Vozes 2024; Vida para além da morte, Vozes, muitas edições, 2023.
Edição: Martina Medina