“Meu setembro amarelo: Por que eu saí da Petrobras”

Com sua vida em risco e emocionalmente abalada pela onda de violência contra homossexuais, a engenheira ambiental Jacilene Moreira não recebeu o devido acolhimento, nem empatia por parte da gestão da Petrobrás,  onde esteve empregada até junho.

Como muitos outros petroleiros que sofrem as consequências da atual gestão bolsonarista, cujos pilares são privatizar a empresa e desmontar os direitos e redes de proteção do trabalhador, Jacilene não aguentou a pressão.

Apresentou crises de ansiedade e depressão e teve seu sofrimento psíquico ainda mais agravado pela omissão e descaso da gestão da Petrobrás, que negou-se a reconhecer o grave quadro de distúrbios mentais em que se encontrava.

“Em consultas de praticamente 15 minutos de duração com os médicos do trabalho da Petrobras, tive meus atestados psiquiátricos não homologados reiteradas vezes. Pedi à empresa que uma junta médica analisasse um dos meus atestados que não havia sido homologado por um dos seus médicos. Não fui ouvida”, revela a engenheira em depoimento publicado nesta segunda-feira, 23, em seu perfil no Linkedin.

O post já foi amplamente compartilhado nas redes sociais, com hastags relacionadas ao movimento Setembro Amarelo, de prevenção ao suicídio.

“Ainda há quem acredite que não falar sobre alguns assuntos é uma forma de evitá-los (e não contabilizá-los nos indicadores). Talvez por isso a saúde mental não seja um tema valorizado no ambiente de trabalho de muitas empresas, como na Petrobras”, declara Jacilene, que, pressionada, resolveu pedir o desligamento da Petrobrás.

Leia a íntegra do desabafo da  ex-engenheira da Petrobrás em seu perfil no Linkedin: 

Meu setembro amarelo: Por que eu saí da Petrobras

Em 2008, recém-formada, após ser aprovada em um concurso público, entrei em umas das maiores empresas do setor de petróleo e gás do mundo. A Petrobras ainda estava no auge dos investimentos realizados na área ambiental da empresa – o que incluiu um concurso com o maior número de vagas abertas para engenheiros ambientais, no qual eu fui admitida.

Sempre fui alguém que precisa entender o motivo pelo qual algumas regras se impõem. No entanto, durante toda minha trajetória, respeitei o totalitarismo hierárquico de uma empresa sexagenária – criada às vésperas da ditadura militar – que carece de alguns progressos. Os homens mais velhos – e mais brancos – continuam tendo os cargos mais altos e as ordens de um superior pouco são questionadas.

Até que eu fiz um pedido de licença temporária não remunerada à minha gerente.

Minha vida em outras mãos

Sabe-se que a licença temporária não remunerada é uma solicitação que pode ou não ser aceita pelo empregador. Fiz este pedido no final de 2018 – à época, eu integrava a gerência de Responsabilidade Social.

Em novembro de 2018 eu já não estava conseguindo sair normalmente de casa por medo, abalada emocionalmente pela eleição, então recente, de Jair Bolsonaro para a presidência da república. O clima de perseguição a LGBTs cresceu muito às vésperas das eleições, com relatos de pessoas, algumas próximas, que haviam sido vítimas de homofobia – incluindo agressões físicas. E eu não queria ser a próxima. Pela primeira vez na vida tive medo de viver no meu país.

Minha esposa começou a inscrever-se em processos seletivos de mestrado no exterior, como uma alternativa para passarmos um tempo longe disso tudo. Começamos a planejar nossa vida – ainda que temporária – fora do Brasil.

Me deparei, então, com a necessidade de abrir minha vida pessoal no trabalho. Como eu iria convencer minha gerente de que eu precisaria de uma licença temporária sem me expor? Será que ela seria capaz de tamanha empatia a ponto de aprovar o meu afastamento sem ponderar se meus motivos eram “suficientes”, mesmo que fossem particulares?

Ainda abalada emocionalmente, na primeira segunda-feira após as eleições pedi para conversar com ela com urgência. Em uma sala de reunião, a sós, contei sobre todos os meus pavores. Expus meus medos e fragilidades, falei do quanto a realidade que se apresentava havia impactado a mim e à minha esposa, falei da minha depressão e disse que eu não me sentia segura no Brasil. Em um desabafo emocionado e sincero, justifiquei o meu pedido de afastamento.

Ela tentou amenizar a situação, mencionando que, na visão dela, o país não se tornaria um lugar tão hostil para LGBTs e que gostaria de me manter na gerência, no entanto, afirmou que não era do perfil dela obrigar um empregado a permanecer em um lugar que ele não quisesse.

Combinamos então que eu tiraria 15 dias de férias a que tinha direito e depois sairia em licença. Estabelecemos uma data e eu fiquei responsável por fazer a distribuição dos meus projetos pela equipe de forma que não prejudicasse ninguém.

Feito todo o procedimento burocrático para solicitação da licença não remunerada e com a aprovação das gerências superiores, cumpri todas as demandas acordadas com a gerente para poder sair de licença logo que terminasse 2018. Estava tudo encaminhado. Uma luz enfim surgia para mim.

Porém, às vésperas da minha saída, fui avisada pela gerente que os planos haviam mudado. Sem maiores explicações, ela me disse apenas que a gerente executiva havia “mudado de ideia”, e que por isso não seria mais possível conceder a licença naquele momento.

” Nenhum empregado ou potencial empregado receberá tratamento discriminatório em consequência de sua raça, cor de pele, origem étnica, nacionalidade, posição social, idade, religião, gênero, orientação sexual, estética pessoal, condição física, mental ou psíquica, estado civil, opinião, convicção política, identidade de gênero ou qualquer outro fator de diferenciação individual.” item 2.8 do Código de Ética do Sistema Petrobras

Mas onde eu fico nessa história?

Cerca de um mês se passou desde que obtive a carta com a aprovação das gerentes imediata e executiva para a concessão da minha licença até o dia que em que fui informada que a gerente executiva “mudou de idéia”. Neste período, eu e minha esposa começamos a nos organizar para deixarmos o país. Eu vendi o único imóvel que tinha, minha esposa pediu demissão, vendeu seu carro e começamos a vender nossos móveis.

Com toda a minha vida organizada para deixar o Brasil em janeiro de 2019, quando recebi a notícia de que a gerente havia “mudado de ideia” três dias antes de sair para as férias que antecediam a licença, entrei em colapso. Passei os 15 dias de férias entre crises de ansiedade, taquicardia, insônia e pensamentos depressivos.

Não consegui voltar ao trabalho ao final do período de férias. Fui afastada por orientação médica. Mesmo assim, continuei a solicitar à minha gerente uma resposta formal sobre o meu pedido de licença temporária, pois ela não havia formalizado ainda a sua “mudança de ideia”, me informou apenas oralmente, sem nenhum registro. E, afinal, eu precisava saber os motivos que embasavam sua mudança de decisão repentina, que afetava diretamente minha situação na empresa.

“Na relação com seus empregados, o sistema Petrobras compromete-se a: Assegurar a disponibilidade e transparência das informações que afetam os seus empregados, preservando os direitos de privacidade no manejo de informações de saúde, funcionais e pessoais a eles pertinentes” – item 2.4 do Código de Ética do Sistema Petrobras

Desde então fiquei afastada da empresa durante 6 meses devido a um quadro de depressão, ansiedade e transtorno de adaptação consequentes dessa mudança de posicionamento da gerente executiva sobre a concessão da licença.

Mesmo com um número expressivo de empregados no quadro da gerência, com duas empregadas prestes a retornar de licença maternidade e com todo o meu relato de adoecimento, a gerente executiva de responsabilidade social (uma área da empresa em que se pressupõe que há um maior cuidado com os aspectos sociais) preferiu manter seu posicionamento autoritário.

Durante esse tempo de afastamento não tive apoio da minha gerente que, mesmo tendo conhecimento dos laudos médicos que atestavam a necessidade do meu afastamento temporário por motivos de saúde, preferiu se abster e gerir administrativamente minha situação através da gerência de RH, por meio de telegramas de solicitação de retorno ao trabalho com ameaça de punições.

“Não praticar, nem compactuar com ações que envolvam a prática de atos repetidos de violência psicológica, como assédio moral e assédio sexual, nem de atos pontuais de natureza ofensiva, humilhante, impertinente ou hostil praticados individualmente ou em grupo, independente de relações hierárquicas entre as partes.” – item 4.14.1 do Guia de Conduta do Sistema Petrobras

Em consultas de praticamente 15 minutos de duração com os médicos do trabalho da Petrobras, tive meus atestados psiquiátricos não homologados reiteradas vezes. Pedi à empresa que uma junta médica analisasse um dos meus atestados que não havia sido homologado por um dos seus médicos. Não fui ouvida.

Com medo de sair de casa, noites de insônia somado à olhares e atitudes de descrédito por parte dos médicos, da assistente social e da gerência com relação ao meu estado de saúde, fui adoecendo a cada dia mais. Além de ter o meu salário cortado e receber suspensão da gerência em virtude da minha ausência – embora estivesse sem condições de saúde para ir trabalhar -, minhas semanas se passavam entre perícias e consultas médicas para tentar validar o meu estado de saúde diante do INSS e da empresa. Mas nada pôde convencê-los de que eu estou doente.

Em quais condições um médico do trabalho pode recusar o afastamento recomendado por um médico especialista em psiquiatria e legalmente habilitado?

Necessidade de acolhimento

No período em que estive mais adoecida e necessitando de apoio, a assistente social da Petrobras apenas se limitava a afirmar que eu deveria comparecer ao trabalho pois eu estava considerada apta pelos médicos da empresa. E posteriormente, a mesma assistente social parou de responder aos meus e-mails de solicitação de apoio para agendamento da perícia médica no INSS.

Em um estado de completo esgotamento mental, depois de meses envolvida em todo esse processo, recebendo recorrentes telegramas e e-mails em nome da gerência solicitando o meu retorno, sugeri à minha gerente que eu retomasse o trabalho, inicialmente, em home office (uma modalidade na qual muitos funcionários da Petrobras já atuam), tendo em vista que a maior parte das atividades é executada virtualmente, sendo necessário apenas um computador com acesso à rede da empresa e à internet. Desta forma, eu teria um tempo de adaptação até ter melhores condições de saúde para retornar ao ambiente de trabalho.

A gerente não aceitou, e apenas “estimou que eu estivesse em condições de retornar ao trabalho”.

“Na relação com seus empregados, o sistema Petrobras compromete-se a:

Promover condições de trabalho que propiciem o equilíbrio entre a vida profissional, pessoal e familiar de todos os empregados; e

garantir segurança e saúde no trabalho, disponibilizando para isso todas as condições e equipamentos necessários;”  itens 2.1 e 2.2 do Código de Ética do Sistema Petrobras

O clima de desconfiança que gira em torno das pessoas diagnosticadas com algum tipo de distúrbio psíquico aprofunda ainda mais o sofrimento destas pessoas. Quando não há acolhimento, fica ainda mais difícil lutar contra a depressão.

Até quando a saúde mental não será valorizada nas empresas?

Depois de alguns meses solicitando uma justificativa formal sobre a negativa do meu pedido de licença, fiz uma reclamação formal à Ouvidoria da empresa – apesar de imaginar que possíveis retaliações poderiam advir em virtude dessa reclamação, ser ignorada reiteradamente por meus superiores estava aprofundando minha ansiedade.

Pouco tempo depois, recebi um e-mail da minha gerente que basicamente afirmava que a gerência estava (repentinamente) incumbida de mais atribuições e que, em razão disto, não poderiam me conceder a licença.

Precisamos humanizar nossas relações profissionais

Foram sete meses de letargia. Os dias pareciam todos iguais e os ataques de ansiedade eram cada vez maiores a cada novo contato da Petrobras solicitando meu retorno.

Resolvi olhar com carinho pra mim e acolher meu sofrimento. Completamente desassistida pela empresa e abalada emocionalmente, solicitei o desligamento da Petrobras.

Até que ponto é legal ou ético uma empresa aprovar a demissão de um empregado que está em tratamento psiquiátrico e com reiteradas recomendações de afastamento do trabalho por médicos especializados na área?

Hoje, praticamente 3 meses após meu desligamento, consigo escrever sobre o que aconteceu. Provavelmente, se eu tivesse me forçado a retornar ao trabalho quando o meu atestado médico foi negado, as consequências para minha saúde seriam piores. Pensamentos relacionados ao desejo de acabar com todo aquele sofrimento já me passavam pela cabeça e voltar ao ambiente onde houve o gatilho que levou ao meu adoecimento poderia ter consequências trágicas.

A sociedade é cheia de tabus. A depressão ainda é um deles. Ainda há quem acredite que não falar sobre alguns assuntos é uma forma de evitá-los (e não contabilizá-los nos indicadores). Talvez por isso a saúde mental não seja um tema valorizado no ambiente de trabalho de muitas empresas, como na Petrobras.

O Setembro Amarelo é sobre a prevenção do suicídio e nós precisamos trazer para a esfera profissional o diálogo sobre a depressão. Precisamos humanizar as nossas relações profissionais.

Chegar ao diagnóstico assertivo de uma patologia mental – como é o caso da depressão – não é tão simples quanto diagnosticar uma fratura óssea, por exemplo. No caso da fratura, o diagnóstico se baseia em exames de características físicas, mensuráveis. No caso da depressão, não. E é nesse momento que as empresas devem abrir espaço para o diálogo com o empregado, sem o peso das hierarquias.

[Via Linkedin | Foto: Flávio Emanunel -Agência O Globo]