Vitor Menezes / Imprensa do NF – O advogado Normando Rodrigues, assessor jurídico do Sindipetro-NF (Sindicato dos Petroleiros do Norte Fluminense) e da FUP (Federação Única dos Petroleiros), está lançando o livro “Muralha – Os juízes do trabalho e a ideologia da destruição” (Dialética), que mostra como, a partir da década de 1990, a Justiça do Trabalho se tornou cada vez mais capturada pela ideologia neoliberal no Brasil.
“Bordões e primados afirmados pela visão social de mundo neoliberal, a princípio incompatíveis com a razão de ser do judiciário trabalhista, passaram a ser ouvidos dos magistrados nas salas de audiências e julgamentos”, registra a apresentação da obra.
O livro, que está disponível para venda em is.gd/muralha, discute como e porque a ideologia neoliberal foi apreendida pelos juízes “sociais”, e quais valores passaram a substituir o protecionismo ao mais fraco.
Em entrevista à Imprensa do NF, Normando detalha as origens do crescimento da visão neoliberal entre os juízes, o modo como processos trabalhistas se tornaram cada vez mais desfavoráveis para os trabalhadores e como lideranças sindicais precisam estar atentas para não apostarem todas as fichas no Judiciário.
Confira:
Imprensa do NF – Sua tese, no livro, é a de que o neoliberalismo do pós-anos 1990 capturou a visão dos juízes do trabalho, que se distanciaram do espírito de proteção aos trabalhadores. Mas é possível dizer, de fato, que antes disso o Judiciário tinha uma prática realmente mais voltada para a defesa do lado mais fraco nessa relação entre capital e trabalho?
Normando Rodrigues – Desde a abertura democrática e o fim da Ditadura, até o advento do governo FHC, houve um progresso significativo na Justiça do Trabalho, em termos de garantia dos direitos trabalhistas. No livro, tento destacar que esse desenvolvimento foi estancado pela adesão à ideologia neoliberal. Entretanto, há aqui uma ressalva importante, pois isso não quer dizer que antes, na prática, houvesse “efetiva” afirmação dos direitos trabalhistas. Para que não se ache que há contradição entre avanço, por um lado, e falta de efetividade, por outro, é preciso entender as limitações da Justiça do Trabalho. Limitações tanto de “origem”, quanto em termos de intervenção na realidade. Na origem, a própria legislação criou o “duplo caráter”, as duas caras do judiciário trabalhista, quando da publicação da CLT, em 1943: de um lado, o estado afirma os direitos “individuais” dos trabalhadores; enquanto do outro reprime duramente os direitos coletivos e a capacidade de organização política dos mesmos trabalhadores. Nossos juízes do trabalho, via de regra, nunca fugiram dessa bifacialidade. E, ainda por cima, isto apenas no campo do debate jurídico, fora do cotidiano das relações de trabalho. Em termos de intervenção na realidade o aparato judicial trabalhista é, desde sempre, a “justiça dos desempregados”. Ao longo de toda a sua existência, raros foram, e são, os processos de trabalhadores ainda empregados. E o percentual de processos – embora assustadoramente crescente antes da destruição da CLT, em 2017 – sequer acompanhava as curvas de desemprego.
Imprensa do NF – E o que está na origem disso?
Normando – Boa parte da responsabilidade por isto é do próprio judiciário, sempre resistente a refletir sobre sua ineficácia, e a adotar medidas de real significado social. Apenas num exemplo rápido, a Constituição criou em 1988 mecanismos para que os sindicatos proponham ações em nome dos trabalhadores, via “substituição processual”, mas os juízes do trabalho se recusaram a adotar a medida por 17 anos. Foi necessário um comando do STF para garantir a “substituição”, e, mesmo assim, ainda ainda hoje a justiça a inviabiliza na execução. Claro, não se vê nada semelhante nas ações em favor dos patrões. Para estes o “processo trabalhista” sempre foi, e é ainda, um grande negócio. Uma empresa que dispense 100 empregados, sem pagar rescisão, já lucrará com a minoria que desistir de ingressar na justiça. E, para os que ingressarem, a empresa sempre poderá pagar 70% do que deve, e sepultar as ações com um excelente acordo para o empresário. Acordo que o trabalhador aceita, coagido pelo desemprego, pela miséria, e pela perspectiva de anos de processo judicial.
Imprensa do NF – Você costuma dizer que as ações jurídicas são apenas uma parte da luta, mas que o essencial mesmo é o que se dá nas mobilizações, na organização dos trabalhadores, que só a atuação política muda a realidade. Esse comportamento dos juízes reforça essa necessidade?
Normando – Sem dúvida alguma. Um terrível efeito colateral da “bifacialidade” a que me referi é que, por reflexo da repressão institucional à capacidade de organização política dos trabalhadores, juízes e procuradores tendem a se ver como “protagonistas” dos conflitos no mundo do trabalho, já que os sindicatos são algemados. E, como “protagonistas”, e não “garantidores” dos direitos humanos fundamentais dos trabalhadores, a ideologia passa a desempenhar um papel, na conduta desses agentes do estado, mais importante do que a legislação.
Imprensa do NF – Além da percepção que você tem com a sua larga experiência em assessoria jurídica a sindicatos, há dados que mostram que a maioria das decisões dos juízes do trabalho são contrárias aos trabalhadores? Há teses acadêmicas, por exemplo, que corroboram essa sua leitura da atuação dos magistrados?
Normando – O tema é muito pouco explorado cientificamente, como em geral são os temas ligados à dominação ideológica da sociedade. No entanto, na breve pesquisa que fizemos, constatamos que da minoria de juízes que se posicionam ideologicamente – minoria expressiva, porque formadora de opinião – metade aderiu francamente ao neoliberalismo, muitas vezes em defesas opostas ao texto da Constituição e das Leis, como aliás fazem Fuchs, Barroso e outros, no STF. Isso é muito grave, dada a função social que os juízes exercem, agentes de uma política que o estado definiu na Constituição e nas leis. Substituem essa política, na prática, por bordões econômicos irrealistas, tais como “o livre mercado será melhor para os trabalhadores”, e assim se passam para o lado “adversário”. É como se metade dos defensores da “muralha” de uma cidade assaltada por um exército hostil, se juntasse aos assaltantes do lado de fora e abandonasse a população que juraram defender, no início de suas carreiras jurídicas.
Imprensa do NF – De que modo você acredita que a leitura do seu livro, pelos trabalhadores, pode contribuir no entendimento das relações entre mundo do trabalho e Justiça?
Normando – Hoje vivemos uma combinação do pior de dois mundos, nas relações de trabalho. Do lado “de dentro” da muralha, temos duas gerações de sindicalistas habituados a tratar as demandas e necessidades da classe dentro “das quatro linhas do gramado” – como gosta de dizer o fascista que habita o palácio do Planalto -, sem perceber que o espaço interno a essas quatro linhas não só é cada vez mais restrito, e que o jogo ali dentro jogado é rigorosamente “viciado” a favor dos patrões. E, do lado de fora da “muralha”, temos fascismo e neoliberalisno acumpliciados na maior destruição de direitos já realizada em qualquer nação, comparável à situação de um país arrasado, militarmente derrotado numa guerra, e ocupado por um vingativo exército vitorioso. Ante esse quadro distópico, a esperança é que o livro possa ajudar os trabalhadores, sobretudo os dirigentes e lideranças, a perceber que não há solução para uma garantia efetiva dos direitos sociais, senão a que venha dos próprios trabalhadores, e não de juízes, do ministério público, ou da advocacia. É por isso que dos quatro temas de que trata a “Declaração dos Direitos e Princípios Fundamentais do Trabalho”, da OIT, o central é a “Liberdade Sindical”. O melhor combate que pode ser dado ao “trabalho escravo”, ao “trabalho infantil” e à “discriminação no trabalho” (os outros três temas de que trata a “Declaração”), é o combate travado pelos sindicatos.
Imprensa do NF – Você tem alguma expectativa acerca da recepção da sua obra junto aos próprios magistrados? Poderia de alguma forma contribuir para uma reflexão, no próprio ambiente da magistratura do trabalho, acerca desse comportamento anti-trabalhador?
Normando – Numa palavra, não. O esboço dos juízes, enquanto segmento corporativo, é o de um coletivo não só voltado prioritariamente para a defesa de seus próprios interesses, como predominantemente vinculado ao que existe de mais conservador na classe média brasileira. Somente a alteração da ideologia dominante nessa classe social seria capaz de alterar a ideologia marcadamente conservadora que caracteriza nosso judiciário. Não posso deixar de lembrar que ser conservador é querer manter, “conservar”, o que existe. E o que existe, hoje, no Brasil? Um cenário de abissal desigualdade social, no qual a maioria dos lares brasileiros experimenta insegurança alimentar, e o que antes era lixo, em termos de resíduos de arroz, de feijão, de aves e de bovinos, se torna o desejo cotidiano de multidões. Ser conservador, querer conservar este quadro, é rigorosamente ser um criminoso social. E um criminoso com terrível potencial de danos, quando se trata de um juiz.