Deyvid Bacelar*
No debate sobre transição energética, um erro comum confunde duas coisas diferentes – extrair petróleo e queimar combustíveis fósseis. A confusão não é à toa: o termo “combustível fóssil” aparece por convenção política e energética, englobando também as fontes fósseis que dão origem aos combustíveis. Mas isso é uma classificação de origem, não de uso. Isso faz com que muitas pessoas acreditem que o petróleo existe apenas para virar gasolina, diesel ou querosene. Essa é uma visão limitada.
O petróleo cru, tal como é extraído, não é um combustível, porque não pode ser queimado diretamente; ele é apenas uma matéria-prima energética que precisa ser refinada para gerar combustíveis de fato.
A maior parte da vida moderna depende do petróleo por razões que vão muito além dos combustíveis e ignorar isso gera ruídos e distorções importantes. Defender o fim da queima de combustíveis fósseis não significa abrir mão da extração de petróleo, porque são dimensões distintas do mesmo recurso. Compreender essa diferença é fundamental para um debate honesto e consistente sobre clima, desenvolvimento e indústria.
O petróleo está em quase tudo. Muito além da gasolina e do diesel, ele é uma matéria-prima indispensável para a vida moderna. De acordo com a ONU Meio Ambiente, cerca de 98% dos plásticos de uso único são feitos a partir de petroquímicos derivados de petróleo e gás. Isso inclui componentes essenciais como computadores, celulares, TVs, geladeiras, fogões, cabos e tomadas, além de itens do nosso cotidiano – roupas e cortinas de tecidos sintéticos, medicamentos e embalagens farmacêuticas, garrafas PET, vasilhas, brinquedos. Há ainda uso em setores industriais: pneus, peças automotivas, fertilizantes, tintas, asfalto, sem falar nos insumos petroquímicos como lubrificantes, adesivos e resinas.
Atualmente, não existem alternativas viáveis e escaláveis para substituir totalmente esses materiais. Sem a extração de petróleo para essas finalidades, a indústria global correria um risco enorme – não por falta de combustível, mas por falta de matéria-prima.
Combustíveis fósseis x extração de petróleo
Combustíveis fósseis são parte do petróleo usado para energia (gasolina, diesel, querosene); extração de petróleo é o processo de retirar o petróleo do subsolo, que depois é usado para muito mais do que combustíveis.
É a combustão que impulsiona o aquecimento global. A extração e o refino também geram impactos e precisam ser rigorosamente regulados, mas representam uma parcela bem menor das emissões.
Ainda assim, a extração segue sendo essencial porque fornece a matéria-prima usada em plásticos, medicamentos, eletrônicos, fibras sintéticas, fertilizantes e inúmeros itens que sustentam o dia a dia. O desafio da transição energética é, justamente, eliminar a queima, ao mesmo tempo em que se desenvolvem alternativas para reduzir, no futuro, a dependência industrial do petróleo.
Diferenciar a extração do petróleo da queima dos combustíveis derivados é crucial para um debate sério sobre clima e desenvolvimento, porque as maiores emissões vêm da queima, enquanto a extração segue necessária para diversas cadeias produtivas que ainda não possuem alternativas viáveis.
Por que não há contradição?
Embora a ciência seja unânime sobre a necessidade urgente de reduzir a queima de combustíveis fósseis para conter o aquecimento global, isso não significa o fim imediato da extração de petróleo. Os principais organismos internacionais apontam que a transição energética deve priorizar a substituição dos combustíveis fósseis no setor de energia, responsável pela maior parte das emissões, por fontes limpas. Há, hoje, alternativas como biocombustíveis, energia solar, energia eólica, hidrogênio verde e mobilidade elétrica.
Ao mesmo tempo, a economia global ainda depende do petróleo como matéria-prima para fabricar diversos insumos, como dito acima, para os quais não existem alternativas viáveis em escala. Por isso, acabar com os combustíveis fósseis significa descarbonizar o uso energético do petróleo, não paralisar sua produção de forma abrupta – o que causaria um colapso tecnológico, industrial e social.
Além disso, é fundamental reconhecer que a renda gerada pela indústria do petróleo e gás tem papel estratégico para viabilizar uma transição energética justa, soberana e popular no Brasil. A criação de fundos soberanos financiados por setores que mais contribuem para o PIB, especialmente o de petróleo e gás, responsável por cerca de 10% do PIB industrial, permite transformar recursos provenientes de atividades que ainda têm impacto climático significativo em investimentos estruturantes para um futuro de baixo carbono. Trata-se de garantir que essa mudança ocorra de forma soberana, inclusiva e capaz de reduzir desigualdades históricas entre o Norte e o Sul Global, bem como entre as regiões brasileiras, assegurando que trabalhadores e comunidades não sejam deixados para trás.
O caminho responsável
A solução está no equilíbrio: reduzir drasticamente o uso energético do petróleo, mas manter sua extração de forma responsável enquanto surgem e se consolidam alternativas para suas aplicações industriais. Essa visão reconhece a complexidade da economia global e desfaz a falsa contradição entre defender o fim da queima de combustíveis fósseis e a continuidade da extração de petróleo para fins essenciais.
Na prática, é exatamente isso que uma transição energética realista, justa, soberana e popular exige. Defender o fim da gasolina, do diesel, do querosene de aviação (QAV), do gás liquefeito de petróleo (GLP), metanol e óleo combustível não é ser contra a extração de petróleo, é colocar a prioridade climática no centro, sem paralisar a indústria, a tecnologia ou a vida cotidiana.
*Coordenador-geral da FUP (Federação Única dos Petroleiros). Publicado originalmente no Brasil 247.





