Emprego, educação, saúde, abastecimento de combustíveis, meio ambiente, cultura e esporte são algumas das áreas que podem ser impactadas com a venda da estatal
Por Guilherme Weimann
Dois em cada três brasileiros são contrários a qualquer tipo de privatização. Essa estimativa equivalente a 67% foi verificada no último levantamento realizado sobre o tema pelo Instituto de Pesquisas Datafolha, em agosto do ano passado. No caso da Petrobrás – a maior das estatais -, 65% dos entrevistados se opõem a sua venda.
Apesar disso, a estratégia do atual governo de Jair Bolsonaro (sem partido) tem os desinvestimentos como principal componente. O Executivo já realizou 51 leilões desde o início do mandato e ainda contém no catálogo uma lista com mais de 100 ativos que pretende vender por meio do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI).
Devido à recessão que atingiu praticamente todas as principais potências mundiais desde o início da pandemia do novo coronavírus, o plano do governo de privatizar 64 ativos estatais neste ano está sendo adiado – apenas quatro leilões foram concretizados até o final de setembro.
Esse adiamento foi alvo de críticas de setores mais radicais do mercado financeiro, o que causou baixas na equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, que havia prometido no início da sua gestão que arrecadaria a somatória de R$ 1 trilhão com privatizações.
Apesar desses desvios de percurso, o governo segue uma agenda neoliberal que tenta abrir as portas ao capital privado em todas suas frentes de atuação. Mesmo as estatais fora do plano de desinvestimentos estão passando por um processo contínuo de desmonte. Esse é o caso da Petrobrás.
Desde 2018, o governo já se desfez indiretamente de 16,2% das ações ordinárias (com direito à voto) da Petrobrás – a Caixa vendeu R$ 9,6 bilhões e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) R$ 22 bilhões. Com isso, o Estado passou a deter apenas 50,2% da petroleira, o limite para manter seu poder de decisão.
Além disso, o atual presidente da Petrobrás, o economista Roberto Castello Branco, tem implementado uma série de privatizações internas na empresa, que em 2019 totalizaram R$ 67,1 bilhões. Somente durante a pandemia, de acordo com levantamento exclusivo da reportagem do Sindipetro Unificado, foram colocados 382 ativos à venda.
A estratégia da atual direção é focar todas as atividades da companhia na exploração e produção na área do pré-sal, concentrados nos estados do Sudeste. Para isso, elaborou um cardápio de venda que inclui fábricas de fertilizantes, termelétricas, gasodutos e refinarias.
Nesse cenário, um dos maiores símbolos nacionais está correndo o risco de limitar seus sotaques a pouco mais de três ou quatro entes federativos. Com o objetivo de mostrar um outro ponto de vista em relação à atual estratégia adotada pela direção da Petrobrás, que completa 67 anos no dia 3 de outubro, a reportagem elencou oito motivos contrários a sua privatização. Confira.
Geração de empregos
Desde a sua criação, a Petrobrás se colocou como indutora da economia brasileira. Os investimentos da companhia servem como um efeito cascata, acionando uma extensa cadeia industrial de fabricação de máquinas, equipamentos, embarcações, construção civil, além de ser responsável por fornecer matéria-prima para a indústria química.
De acordo com dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), os investimentos da estatal subiram de US$ 6 bilhões, em 2003, para US$ 48 bilhões, em 2013. Depois disso, houve uma queda gradativa até chegar aos US$ 10 bilhões do ano passado. Esse declínio se refletiu diretamente nos empregos.
Em 2003, a estatal empregava 48 mil trabalhadores próprios e 123 mil terceirizados. No ano de 2013, esse número cresceu para 86 mil trabalhadores próprios e 360 mil terceirizados. Mas o quadro de funcionários despencou novamente com o enxugamento dos investimentos – a Petrobrás fechou o ano de 2019 com 57 mil trabalhadores próprios e 103 mil terceirizados, configurando-se como a empresa do setor que mais demitiu funcionários em todo o mundo.
De acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep), cada R$ 1 bilhão investido em exploração e produção gera R$ 1,28 bilhão no Produto Interno Bruto (PIB) e 26.319 ocupações. Cada R$ 1 bilhão investido em refino implica na geração de R$ 1,27 bilhão no PIB e 32.348 ocupações.
Industrialização
Na economia, existe uma expressão chamada “doença holandesa”, que se refere ao processo de aumento expressivo da exportação de recursos naturais e, consequentemente, o declínio do setor manufatureiro. A expressão surgiu na década de 1960, quando a elevação das vendas de gás pela Holanda ocasionou a valorização cambial e, posteriormente, a inviabilização dos demais produtos industriais do país.
Esse é um sintoma da maioria dos países dependentes da exportação de commodities, decorrentes do agronegócio e da mineração, por exemplo. No caso do Brasil, esse risco aumentou ainda mais desde a descoberta do pré-sal – a maior no setor petroleiro do século XXI. Com estimativas que apontam a existência de aproximadamente 200 bilhões de barris de petróleo, o pré-sal é a principal fonte de exploração da Petrobrás – já que ultrapassou o pós-sal no ano de 2017.
Para evitar a “doença holandesa”, devido aos grandes volumes de recursos previstos com a exportação de petróleo dessa área da costa brasileira, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou em 2010 a Lei da Partilha, como alternativa ao modelo de concessão criado no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Ela instituiu a Petrobrás como operadora única dos campos do pré-sal, com participação mínima de 30% em todos os consórcios.
Lula também criou no mesmo ano o Fundo Soberano, que é uma espécie de poupança destinada a receber a parcela dos recursos do pré-sal reservadas ao governo federal, como royalties e participações especiais. A lei foi criada com o objetivo de evitar os efeitos da entrada massiva de dólares do país e investir no desenvolvimento econômico e na melhoria dos indicadores sociais.
Todas essas leis, entretanto, têm sofrido diversas alterações nos últimos anos. De autoria do senador José Serra (PSDB), o PLS 131/2015, aprovado no início de 2016, retirou a Petrobrás como operadora única das atividades do pré-sal. Desse modo, o Estado perdeu o controle sobre o ritmo de produção e a fiscalização do volume extraído, o que pode gerar riscos maiores de sonegação de impostos.
Além disso, houve significativas alterações nas porcentagens de conteúdo local (quantidade mínima de equipamentos produzidos no Brasil que serão utilizados para a exploração de determinado campo) nos leilões dos últimos anos. No leilão de Libra, primeiro do pré-sal realizado em 2013, a porcentagem de conteúdo local estabelecida foi de 55%. Já nos leilões pós impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), a porcentagem despencou para 35%.
De acordo com pesquisa do Ineep, R$ 1 bilhão investido na exploração e produção de petróleo impacta na geração de R$ 1,28 bilhão no PIB e de 26.319 ocupações, com conteúdo local de 55%. Já o conteúdo local de 35%, implica na geração de R$ 1,08 bilhão no PIB e em 21.428 ocupações. O resultado é a perda futura de 4.891 empregos para cada novo bilhão investido no pré-sal, afetando diretamente a indústria brasileira.
Arrecadação
Em 2019, a União recebeu R$ 22,5 bilhões em royalties e participações especiais da exploração e produção do petróleo. Apenas Rio de Janeiro e São Paulo, os dois estados com maiores arrecadações, somaram R$ 20,4 bilhões e R$ 3,8 bilhões, respectivamente.
Estes recursos, entretanto, podem encolher nos próximos anos em regiões que estão fora do eixo do pré-sal. Isso porque a saída da Petrobrás de diversos estados poderá não ser ocupada pelo setor privado.
Isso é o que mostra estudo do Ineep realizado no Rio Grande do Norte. A produção de petróleo em terra no estado caiu de 53 mil para 36 mil barris por dia, entre janeiro de 2013 e janeiro de 2019. No mesmo período, a produção da Petrobrás diminuiu 18 mil barris por dia – de 52 mil para 34 mil. A produção privada, por outro lado, aumentou apenas dois mil barris diários, o que demonstra a incapacidade das empresas privadas ocuparem o espaço da estatal.
Preço dos combustíveis
Desde o impeachment de Dilma Rousseff, ocorrido em 2016, a Petrobrás já se desfez do controle da BR Distribuidora, subsidiária integral responsável pela distribuição de combustível, e privatizou a Liquigás, que atua no engarrafamento, distribuição e comercialização de gás liquefeito de petróleo (GLP). Além disso, a direção da estatal deu início, a partir de junho de 2017, a uma política que resultou em reajustes consecutivos nos preços dos combustíveis.
De acordo com a Agência Nacional do Petróleo (ANP), de junho de 2017 até o início de março deste ano, a gasolina sofreu reajuste de 28% e o diesel de 22% nos postos de combustíveis. Isso se explica pela opção da estatal em diminuir a produção das refinarias para cerca de 70% da sua capacidade, abrindo caminho para a importação de derivados, e atrelar os preços ao cenário externo. Por esse motivo, os combustíveis têm sofrido variações de acordo com o valor internacional da commodity.
Entretanto, os valores dos derivados para os consumidores finais não acompanharam o declínio histórico do barril de petróleo ocorrido no início do ano, o que mostra a hipocrisia da lógica dos preços de paridade de importação.
Somado a esse cenário, a atual direção da Petrobrás já anunciou que pretende privatizar oito de um total de 13 refinarias, o que poderá gerar elevações ainda maiores nos preços da gasolina, diesel e gás de cozinha.
Abastecimento
Durante teleconferência com analistas em fevereiro deste ano, em plena greve dos petroleiros que paralisou 121 unidades da companhia, o presidente da Petrobrás, Roberto Castello Branco, afirmou que “a falta de competição é ruim para a Petrobrás, porque se não tem competidores, [a empresa] acaba virando um fat cat [gato gordo]”. “Por que vou cortar custos, produzir inovações? Não tem ninguém aí para desafiar”, questionou na ocasião.
No entanto, um estudo da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) contradiz a principal argumentação a favor da privatização do parque de refino. A falta de infraestrutura de interligação do mercado impossibilitará a competição e poderá facilitar o surgimento de monopólios regionais, caso as privatizações sejam realizadas.
Com isso, há o risco de desabastecimento de regiões menos povoadas, que apresentam menos retorno financeiro do que os grandes centros de consumo. Além disso, as possíveis compradoras das refinarias podem optar, em determinado momento, em exportar os derivados refinados em suas instalações.
No caso da Refinaria Abreu e Lima (RNest), que opera desde 2014 na cidade de Ipojuca, em Pernambuco, sua privatização pode significar a perda da soberania sobre a importação de Gás Natural Liquefeito (GLP). Em entrevista exclusiva ao Sindipetro Unificado, o economista Henrique Jäger afirmou que “a privatização de refinarias nos fará reféns de empresas estrangeiras”.
“A privatização da RNest também significa a privatização de 80% da capacidade de importação e tancagem de GLP por parte do Brasil. Isso é uma coisa seríssima, não é simples. O Brasil importa, atualmente, entre 25 e 30% de todo o GLP consumido nacionalmente – 80% dessa importação entra pelo porto de Suape e 20% pelo porto de Santos. A gente está falando de colocar no setor privado 80% da nossa capacidade de armazenamento de GLP importado”, apontou Jäger.
Caso as privatizações se concretizem, a estatal deixaria de responder pela coordenação do abastecimento nacional. A responsabilidade passaria a ser exercida pela ANP, que não possui infraestrutura de logística necessária, o que poderia ocasionar um apagão de combustíveis em diversos estados.
Meio ambiente
O foco da Petrobrás na exploração do pré-sal na região Sudeste pode significar uma maior exposição da costa brasileira a vazamentos de óleo. Essa é a conclusão de um estudo realizado pelo Ineep e divulgado em reportagem da Folha de S. Paulo.
Isso porque a Petrobrás não mantém mais ativos os Centros de Defesa Ambiental (CDA) ao longo do litoral, que eram responsáveis por apoiar os órgãos estatais em possíveis acidentes causados por ela e por terceiros. No ano passado, a estatal contribuiu na contenção do óleo vazado no Nordeste e deu suporte à Vale, mineradora privatizada em 1997, para mitigar vazamentos do navio que naufragou na costa do Maranhão.
Entretanto, com a decisão de focar sua atuação no Sudeste, “o descuido ambiental e marítimo da Petrobrás tem se intensificado”, principalmente “desde que a empresa decidiu fechar os seus Centros de Defesa Ambiental”, aponta o Ineep. A tendência nos próximos anos é que a petroleira resguarde apenas a costa do Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo, onde estão concentradas as atividades do pré-sal.
O relatório anual de sustentabilidade da Petrobrás informa que os vazamentos de óleo e derivados cresceram 2157% entre 2018 e 2019, crescendo de 18,4 m³ para 415,3 m³, respectivamente. Mesmo assim, esse volume é inferior à média anual de vazamentos de petroleiras, que é de 649,2 m³.
Grande parte dessas petroleiras são privadas. Diversas análises relacionam a privatização da BP, na década de 1980, aos crimes ambientais que ocorreram posteriormente: uma refinaria explodiu no Texas, em 2005; um duto se rompeu no Alasca, em 2006; e uma plataforma explodiu no Golfo do México, em 2010, causando o maior vazamento de petróleo da história dos Estados Unidos.
Investimentos em educação, cultura, saúde e esporte
Como citado anteriormente, o PLS 131/2015, de autoria do senador tucano José Serra, aprovado em 2016, retirou da Petrobrás a operação dos campos do pré-sal. Essa lei comprometeu parte dos royalties, que são calculados a partir da dedução dos custos de produção.
Como a Petrobrás tem o menor custo de extração do petróleo nas áreas do pré-sal, em média US$ 7 por barril, enquanto a média mundial está em U$S 15 por barril, os recursos destinados à Educação e Saúde diminuirão nos próximos anos. De acordo com estimativa da Federação Única dos Petroleiros (FUP), as perdas poderão alcançar R$ 1 trilhão nas próximas décadas.
Segundo levantamento do Dieese, a Petrobrás também tem diminuído gradativamente seus investimentos diretos em indicadores da sociedade brasileira. O orçamento anual destinado à cultura e esporte despencou de R$ 284 milhões para R$ 108 milhões, entre 2013 e 2019.
Desde 2003, quando foi criado o Programa Petrobrás Cultural, 4 mil projetos foram patrocinados pela companhia. O governo Bolsonaro, entretanto, já manifestou o desejo de direcionar esse recurso para investir em redes sociais. Em julho deste ano, a petroleira admitiu ter veiculado 2 milhões de anúncios em sites de conteúdos impróprios, incluindo disseminadores de fake news.
Pesquisa e tecnologia
Em entrevista exclusiva concedida ao Sindipetro Unificado, em junho deste ano, a ex-presidenta Dilma Rousseff recordou o histórico do leilão do campo de Libra, localizado na Bacia de Campos, no pré-sal. “Você sabe a história de Libra? Libra havia sido concedida para a Shell, que perfurou e não achou petróleo. Libra é uma devolução. Só tem uma empresa que conhece como explorar petróleo na bacia do Atlântico. Quem é essa empresa?”, indagou na ocasião.
Em 2001, a empresa anglo-holandesa Shell perfurou um poço de Libra, não encontrou petróleo e, por isso, devolveu o que é considerada uma das maiores reservas nacionais. “Por que Libra era importante? Porque era importante mostrar que havia condições de explorar os campos do pré-sal no modelo de partilha. Ainda não mexeram na partilha, mas você pode ter certeza absoluta de que esse é o objetivo, ou seja, privatizar [a Petrobrás] e acabar com a partilha. Eles querem dominar toda a poligonal que envolve o pré-sal”, explicou Dilma.
Essa história prova que o capital privado não assume os riscos de investir na prospecção de novas áreas e em pesquisas de tecnologias que possibilitem explorar petróleo em águas ultraprofundas.
Grande parte da dívida líquida da Petrobrás (R$ 78,8 bilhões em 2019), que é um dos principais motivos utilizados pela atual gestão para justificar as privatizações, foi adquirida justamente em investimentos nessas áreas que não tem um retorno imediato. Com isso, privatizar a Petrobrás, poderia barrar a descoberta de novas reservas em território nacional