Permito-me compartilhar reflexões políticas que podem informar escolhas difíceis e o exercício responsável do voto. Lembro que escrevo esse texto enquanto cidadão, em caráter pessoal, sem qualquer envolvimento das instituições a que sou ligado.
Desde seu início, mantive posição crítica ao governo do presidente Lula. Não me parece que essa experiência de poder tenha enfrentado diretamente, ou em tempo hábil, alguns sérios problemas que assolam a sociedade brasileira, como a política fisiológica, o oligopólio dos meios de comunicação de massa, os riscos ao caráter laico do Estado e os entraves estruturais à inovação e à ciência de qualidade. Passando ao largo desses temas, certamente polêmicos, e que merecem debate intenso no Congresso e fora dele, ou retraindo-se diante das reações negativas, o governo perdeu a oportunidade de constituir uma maioria real, calcada em maior conscientização e sensibilização da opinião pública e da sociedade civil e, portanto, capaz de defender seus méritos.
Apesar de todas as dificuldades, não tenho dúvidas de que a aliança que governa o Brasil representa grandes avanços que a diferenciam substancialmente de governos anteriores. A ascensão de Lula não foi apenas um símbolo de superação e amadurecimento político. Mais do que isso, seu governo foi marcado por compromissos sociais e por apostas democráticas no potencial do Brasil cujos precedentes são raros e insipientes. Em quadro de perplexidade em relação a modelos de sociedade aptos a transformar o país, o governo compreendeu a correlação de forças do mundo contemporâneo e soube ser pragmático ao conciliar objetivos conceitualmente contraditórios, conforme esquemas aceitos até então, como combate à inflação e rápido desenvolvimento econômico, emprego com proteção social e aumento do mercado de trabalho, modelo exportador de commodities e expansão do mercado de consumo interno.
Proponho, assim, discutir dois temas que conheço bem: Defesa da Democracia e Política Externa (fiz mestrado e doutorado em teoria da democracia e trabalho agora com política externa, como diplomata), e que marcam a distância entre o período 2003-2010 e aquele imediatamente anterior. Essa comparação é fundamental porque José Serra esteve na linha de frente do governo tucano, enquanto Dilma Rousseff ocupou postos-chave no governo liderado pelo PT.
Defesa da Democracia
Parte significativa da imprensa e a oposição têm feito severas críticas ao que consideram ameaça à democracia no governo Lula. O argumento desse tipo sugere que a candidata Dilma constituiria risco ainda maior, em razão de seu “estilo” autoritário. Vale lembrar que Lula não hesitou em rechaçar os boatos de terceiro mandato, o que seria uma tentação óbvia, dada a ausência de sucessores naturais e dada sua extraordinária popularidade pessoal. Dilma, por seu turno, deu provas de compromisso com a democracia, de luta contra a ditadura, tendo coordenado ações do governo que não se cansam de procurar ouvir a sociedade em diversos fóruns, conselhos e conferências, cujo propósito é fazer com que as políticas públicas sejam mais que jogadas de marketing ou decisões de um líder incontestável. Tive oportunidade de ver isso ocorrer nas áreas de educação e de segurança alimentar e nutricional, em que se percebe um diálogo legítimo entre governo e movimentos sociais, que reconhecem seus papéis distintos, mas compartilham códigos discursivos e referenciais comuns, em poucas palavras: “falam a mesma língua”.
Ressalte-se que o histórico do PSDB e de seus aliados é bastante questionável nessa área. Em fins 1993 e 1994, ocorreu no Brasil um processo de revisão constitucional, previsto pela Constituição de 1988. Naquela época havia grande expectativa de que o Partido dos Trabalhadores seria vitorioso nas eleições presidenciais de 1994. E não foi por acaso que a maioria governista modificou o mandato presidencial de cinco para quatro anos, sem possibilidade de re-eleição, por meio da Emenda Constitucional de Revisão no. 5, de 7 de junho de 1994. Esse casuísmo gritante, às vésperas da eleição, não foi caso isolado. A Emenda Constitucional nº 16, que aprovou a re-eleição para os cargos do executivo brasileiro, beneficiando diretamente o Presidente Fernando Henrique Cardoso, data de 4 de junho de 1997, apenas um ano e poucos meses antes do escrutínio de 1998. Mais recentemente, José Serra, enquanto pré-candidato e depois candidato à Presidência da República, defendeu explicitamente o fim da re-eleição, em óbvia tentativa de sinalizar apoio ao projeto de Aécio Neves para 2014 e viabilizar maior coesão do PSDB nas eleições de 2010. Não me parece tratar-se de modo republicano de lidar com as instituições democráticas.
Penso a questão da re-eleição em sua dimensão política de mudança intempestiva e casuística das regras do jogo democrático. As muitas alegações de corrupção e compra de votos no Parlamento, dominado pela aliança PSDB-PFL (esse último, o nome antigo do Democratas), deveriam ter sido mais bem investigadas. No entanto, não acredito em paladinos da moralidade; não são úteis à democracia, pois reduzem instituições e procedimentos à vontade dos “homens de bem”. A corrupção não é novidade em nenhuma democracia (alguns defendem mesmo que a corrupção seja constitutiva da democracia, na medida em que valores tradicionais se esgarçam e se perdem referenciais de ética em sociedades modernas e complexas); o que importa é fortalecer os mecanismos pelos quais uma nova ética pública, ainda que sempre precária, seja constituída, informada por instituições abertas à crítica e à possibilidade de reformas. É preciso analisar como funcionaram as instituições capazes de investigar e punir crimes e irregularidades e defender a Constituição.
A Polícia Federal (especialmente sob o comando de Márcio Thomaz Bastos, então Ministro da Justiça, e o Ministério Público Federal, e seus procuradores-gerais escolhidos pela própria instituição, têm dado mostras de isenção e grande ativismo nos últimos anos, o que contrasta com a lentidão e os constantes arquivamentos no Ministério Público sob a égide de Geraldo Brindeiro. A primeira votação feita pela Associação Nacional dos Procuradores da República para formar a lista tríplice ocorreu em 2001. Os mais votados foram os subprocuradores-gerais Antonio Fernando de Souza, Cláudio Fonteles e Ela Wiecko Volkmer de Castilho. O presidente Fernando Henrique Cardoso recusou os nomes. FHC preferiu reconduzir, pela quarta vez, Geraldo Brindeiro ao cargo de procurador-geral. À época, Brindeiro ganhou o apelido de “engavetador-geral da República”. O presidente Lula, apesar de não ser obrigado a seguir a lista da ANPR, prestigia desde 2003 os indicados pela instituição.
Acrescente-se que o governo FHC contou com ampla maioria no Congresso Nacional, podendo valer-se de inúmeras reformas constitucionais, do instrumento das medidas provisórias, coibido apenas em 2001, e vencendo as eleições, ambas as vezes, já no primeiro turno. Mas a grande imprensa brasileira não considerou nada disso um risco à democracia. Ora, sempre haverá riscos à democracia, e a sociedade deve estar em constante alerta, porém tais riscos não podem imobilizar a ação política, nem impedir a discussão de temas polêmicos.
Política Externa
Aqui o divisor de águas é desconcertante. Com base em melhor compreensão da correlação internacional de forças e em crença permanente no potencial do Brasil, os condutores da política externa nacional enfrentaram com altivez os grandes temas que afligiam o Brasil. Foi relativizada a a fé do governo FHC em organismos multilaterais como ONU e OMC e na relação sempre preferencial com EUA e Europa, buscando-se abordagem mais pragmática que identificasse e conciliasse melhor os princípios e os interesses da sociedade brasileira. Façamos um apanhado:
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A Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), que representaria grandes perdas para o projeto de um Brasil e de uma América Latina soberanos e prósperos, foi exitosamente enterrada. O governo FHC parecia inclinado a buscar algum tipo de acordo com os EUA, que permitisse a entrada em vigor da ALCA. Os setores industriais e de serviços teriam sido afetados de forma quase irreversível.
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A Rodada Doha de negociações da OMC encontrou a firmeza de propósitos de um grupo que transformou a própria gramática dos arranjos políticos no âmbito daquela organização: o G-20, que reuniu países de agricultura de subsistência e grandes países exportadores em desenvolvimento para contra-arrestar o domínio da pauta e das decisões que exerciam Europa e EUA.
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Novas embaixadas foram abertas ou reabertas em inúmeras capitais da África e da Ásia. Essa ênfase em relações bilaterais com o mundo em desenvolvimento garante presença e informação de primeira-mão em ambientes cada vez mais cruciais para o desenvolvimento econômico mundial. Além disso, nossa capacidade de barganha frente às potencias ocidentais, sem dúvida importantes, aumenta consideravelmente na medida em que temos outras alternativas de comércio, intercâmbio, cooperação e investimento. Essa política também atende à reivindicação histórica de maior integração com a África e com a América Latina, regiões que compartilham conosco uma identidade, uma história de colonialismo, culturas, religiões e populações.
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Novos grupos foram criados para reinserir o Brasil no mundo de forma mais soberana e capaz de promover os seus interesses sem idealismos estéreis:
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O Brasil não se furtou a atuar com coragem e independência no Conselho de Segurança das Nações Unidas, acreditando na sua capacidade de negociação, no que representamos de novo no jogo de poder tradicional e em nossa competência diplomática. No que diz respeito à questão nuclear iraniana, o resultado foi um acordo entre Brasil, Turquia e Irã (a Declaração de Teerã) que será lembrado sempre como tentativa digna de evitar a guerra, ou mais propriamente, de evitar o desenho de um caminho de sanções e reprimendas que geram radicalização de ambos os lados e aumentam sobremaneira o risco da guerra. Por um lado, caso a guerra ocorra, o acordo terá sido a prova de que havia uma alternativa. Por outro, caso um acordo abrangente com o Irã seja alcançado, é inevitável que elementos da referida Declaração sejam utilizados. E nos momentos de indefinição, como o atual, a ação brasileira constitui exemplo de que é perfeitamente possível discutir racionalmente com os líderes iranianos e que uma atitude de cooperação é mais produtiva que a arrogância dos ultimatos.
É por tudo isso, em nome da democracia e por todas as conquistas do governo Lula, que defendo a candidatura Dilma 13. A alternativa do PSDB-PFL/Democratas não pode representar a continuidade de nossas conquistas recentes, apesar de discursos falaciosos que fazem tudo parecer uma questão de gerenciamento dos atuais modelos e programas, que dependeria da experiência ou da competência dos líderes. Há diferenças de fundo, que não podem ser reduzidas sem estelionato eleitoral, e que passam por compreensões díspares do lugar do Brasil no mundo, do potencial de desenvolvimento e igualdade da sociedade brasileira e do papel do Estado em nosso espinhoso caminhar de emancipação social e econômica. Essas diferenças, por seu turno, podem-se refletir em oportunidades ou entraves para a vida digna e a autonomia de milhões de brasileiros. Aos que votaram nulo, se abstiveram, optaram por Marina, ou por outros candidatos da esquerda, faço um apelo sincero para que não deixem de escolher um dos dois projetos conflitantes que se apresentam hoje ao Brasil.
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Pablo Ghetti é diplomata e PhD em Direito pela Universidade de Londres (Birkbeck)