Pandemias e crises: do feudalismo à sociedade capitalista atual

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Sociedades só colapsam com epidemias, como o Covid-19, quando já estão muito doentes.

Iderley Colombini*

As pandemias são frequentemente apresentadas como casualidades, como movimentos aleatórios que surgem da interação humana em sociedade e com a natureza. Isso no melhor dos casos, quando não são compreendidas como castigo divino ou como provação para o paraíso. Contudo, quando olhamos historicamente, nos damos conta de que as grandes pandemias se inserem em quadros de crise sistêmica que envolvem a insustentabilidade da própria reprodução social na sua forma vigente. A peste na grande crise do feudalismo no século XIV e a gripe espanhola no final da Primeira Guerra Mundial são grandes exemplos dessa crise sistêmica. A dimensão da gravidade do Covid-19 ainda está em aberto, mas o quadro de crise da forma atual da sociedade capitalista pode ser considerado como certo. Sociedades só colapsam com epidemias, como o Covid-19, quando já estão muito doentes.

A crise do feudalismo no século XIV é normalmente associada ao desastre da proliferação da peste bubônica, nos fazendo esquecer de como essa pandemia estava inserida no próprio colapso das relações feudais. Como apresentado pelo historiador Maurice Dobb, depois do enorme crescimento do feudalismo no século XIII, a manutenção das relações feudais passava a ser insustentável, dada a exploração crescente dos servos para a manutenção dos luxos da nobreza e das guerras constantes entre os reinados. Ao longo do século XIV, as grandes revoltas camponesas vão ganhar ímpeto (como em Flandres em 1310, na França em 1350 com a chamada Jacquerie, e na Inglaterra em 1381), todas acompanhadas do crescimento descontrolado das cidades medievais.

A péssima qualidade de vida e os altos níveis de exploração irão culminar no alastramento da peste bubônica, com ondas de fome populacional que provocaram, segundo estimativas históricas, a diminuição de quase um terço da população europeia. O fim do feudalismo e a ascensão das relações capitalistas se encontram nessa crise do século XIV, dadas as profundas alterações sociais. Depois da crise, os indultos feudais (como a corveia) passaram a ser não mais em trabalho compulsório, mas através da sua monetarização, inserindo-se em uma dinâmica de forte crescimento do comércio. Os senhores feudais, enfraquecidos pelas revoltas e diminuição da população camponesa, passaram a ceder espaço político para a constituição dos futuros Estados Absolutistas. É justamente nesse quadro de Estados centralizados e comércio crescente que se insere o processo de formação da sociedade capitalista.

No começo do século XX, quando ocorreu uma outra grande crise na história recente da humanidade, marcada pelas duas guerras mundiais e por uma profunda restruturação da sociedade capitalista, também foi acompanhada por uma grave pandemia. A chamada gripe espanhola, de 1918, contaminou mais de 500 milhões de pessoas (ou quase 27% da população mundial na época) e fez entre 17 e 50 milhões de vítimas pelo mundo, podendo chegar até a marca de 100 milhões de mortos dependendo da estimativa (perto de 5% da população global no período). A doença teve seus primeiros casos nos Estados Unidos, disseminando-se rapidamente entre as tropas na Primeira Guerra Mundial e depois pela população que sofria os horrores da guerra e da fome. Ficou conhecida como espanhola uma vez que a Espanha se manteve neutra durante o conflito, e seus jornais da época divulgaram os casos, ao contrário dos países sob sigilo de informação estratégica de guerra.

É central ter em mente o contexto dessa pandemia. Na virada do século XIX para o século XX, o mundo passava por uma das mais marcantes crises (econômica e política) da sociedade capitalista, que levou a profundas transformações nas décadas seguintes. No final do século XIX, as economias antes calcadas em muitas empresas e grande concorrência passaram a incorrer em um processo de centralização e concentração, formando grandes monopólios (e carteis) industriais e financeiros.

A grande fusão de capitais se unificou no seio dos Estados, dando corpo para as políticas imperialistas, tanto do ponto de vista econômico como militar. Antigas potências hegemônicas que comandavam o ordenamento do sistema internacional, como Inglaterra e França, perdiam espaços para novas economias em ascensão, como Estados Unidos e Alemanha. Do lado dos trabalhadores, a pressão e a exploração eram crescentes, com a concentração de capitais e a grande concorrência monopolista, o que implicou em grandes revoltas trabalhistas e na formação dos grandes sindicatos combativos. A insustentabilidade dessa forma de sociabilidade capitalista era eminente, culminando em uma grande pandemia viral, nas duas guerras mundiais, na ascensão do fascismo e na transformação posterior do capitalismo, com a formação da sociedade de consumo de massa e os novos projetos políticos dos Estados desenvolvimentistas, agora sob a égide da economia norte-americana.

A gravidade em termos sociais do Covid-19 ainda está em aberto, mas já pode ser facilmente considerada a maior pandemia global desde a gripe espanhola de um século atrás, ainda mais dado o impasse entre a propagação do vírus e a destruição da economia global com as necessárias políticas de quarentena. A decisão correta de ser fazer quarentenas generalizadas deve ser tomada em vários países, visto que atinge de forma mais grave principalmente os idosos com propensão cosmopolita (os mandatários do mundo), as taxas de propagação serem altíssimas e uma nova vacina ainda levar alguns meses. Infelizmente, se o grupo de risco fossem os jovens africanos, provavelmente os rumos políticos seriam outros. Nesse contexto, a recessão global a partir de 2020 pode ser sem precedentes na história econômica recente. Mais uma vez, além dos terríveis impactos humanos e econômicos diretos gerados pela pandemia do Covid-19, também nos é importante refletir sobre a crise social atual que vivemos e seus possíveis desdobramentos.

Nas últimas três décadas, o mundo tem passado por um intenso processo de globalização, fruto do estabelecimento das cadeias globais de valor e de um enorme emaranhado financeirizado de tomadas de decisão, juntamente com os enormes avanços tecnológicos de transporte e comunicação. Como a própria pandemia do Covid-19 tem mostrado, a economia e as pessoas nunca estiveram tão conectadas e ligadas como no mundo globalizado atual. Em contrapartida, essa forte ligação mundial não ocorre através de mecanismos e instituições globais e democráticas, mas por meios difusos de relações de poder das grandes economias mundiais, com as grandes decisões e movimentos sendo ditadas pelos jogos especulativos e estratégicos dos mercados financeiros globais.

Dessa forma de relação capitalista de um lado aparentemente fragmentada nos mercados financeirizados e por outro centralizada nas grandes economias, apresenta-se um dos pontos mais evidentes da crise atual, o embate eminente entre China e Estados Unidos no ordenamento da economia global. Se por um lado os Estados Unidos ainda detêm um poderio militar sem precedentes e o controle do sistema financeiro com seu atrelamento ao dólar, a união política entre Rússia e China parece cada vez mais fissurar os pilares de poder norte-americano. As intenções de criar padrões financeiros independentes do dólar estão cada vez mais claras, como pode ser visto, por exemplo, na consolidação dos grandes fundos financeiros ditados pelas petro-moedas. Em 2018, a China criou seu próprio mercado futuro de petróleo, o único a não operar em dólar, corroborado pela Rússia que tem enfrentado embates cada vez mais frequentes com a Arábia Saudita pela imposição do preço internacional do petróleo. A formação de um grande bloco econômico-político na Eurásia, sob a liderança de uma união China-Rússia, colocaria o ordenamento norte-americano do sistema capitalista internacional em xeque.

Os trabalhadores, dentro desse tensionamento global crescente, são os mais impactados. As novas tecnologias, assim como as novas formas de trabalho e de subjetividade do trabalhador, têm provocado um aumento crescente da exploração, com condições de vida cada vez mais precárias. Enquanto as formas de trabalho ficam cada vez mais instáveis, com menores remunerações e ditadas pelos ritmos dos aplicativos e jornadas intermitentes, as grandes corporações multinacionais têm apresentado lucros crescentes, como tão alardeado nos dados de Thomas Piketty sobre o crescimento da renda do 1% mais rico. A competição crescente entre os trabalhadores com rendas cada vez menores tem levado a sucessivas revoltas e manifestações em todo o mundo, muitas vezes materializadas na sua forma mais desesperada e assustadora, o autoritarismo fascista.

De que forma essa crise atual irá se desenvolver e quais serão suas consequências no longo prazo ainda estão totalmente em aberto, apesar da certeza do impacto muito maior nas populações mais carentes e nos países sem atendimento universal de saúde. Com todas as imprevisibilidades, o ano de 2020, com pandemia e colapso econômico, será chave para os desdobramentos futuros. Até que ponto a crise do Covid-19 influenciará os Estados a se fecharem em novas disputas concorrenciais ou na criação de instituições democráticas multilaterais ainda não está definido, muito menos em que condições os trabalhadores e as grandes economias se encontrarão após essa catástrofe. Apesar do aumento das incertezas, parece inevitável um novo período de grandes transformações sociais e de combate permanente às suas formas mais sombrias.

 

*Professor adjunto de Economia na UERJ e técnico-pesquisador no Dieese. Texto publicado originalmente no Le Monde Diplomatique