Petrobras tem de liderar retomada econômica

Petrobras tem de retomar atividade econômica, diz Sinaval
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Em 2014, a indústria naval brasileira registrava 350 mil trabalhadores diretos e indiretos e era líder mundial na construção de embarcações de apoio offshore, impulsionada pelas encomendas da Petrobras. Hoje, essa mesma indústria emprega 40 mil pessoas.

Nesta entrevista exclusiva à newsletter Petrobras Fica na Bacia de Campos, o vice-presidente executivo do Sinaval, Sergio Bacci, reforça que a petroleira tem papel fundamental para reverter esse quadro.

“Sem a Petrobras voltar a investir no Brasil, dificilmente a indústria vai sobreviver. E não só a indústria naval, mas toda a indústria brasileira”.

 

Como está o conteúdo local hoje? Quais foram as mudanças nos últimos anos?

Os índices de conteúdo local caíram de 65% para 25%. Com isso, praticamente nada mais é feito no Brasil. Para atingir o atual percentual, basta a parte de subsea (equipamentos instalados no fundo do mar), e isso porque não tem jeito, já que o petróleo está aqui, o subsea tem de ser feito aqui. Todo o resto está sendo feito no exterior.

Então, essa redução percentual, para a indústria do petróleo, ou melhor, para o que chamo de indústria do “entorno” do petróleo, é muito ruim, muito prejudicial.

Sabíamos que haveria essa redução. Mas, na época em que se começou a discutir a mudança do percentual (a partir de 2016), a proposta da indústria naval era um índice de 40%, para ter algo a mais que o subsea a ser feito no país. Foi um diálogo tenso com a ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), e prevaleceu o lobby das operadoras (petroleiras).

Foi um período difícil. A ANP concedeu waver (perdão) a quem não tinha cumprido os índices obrigatórios.

 

Ainda há pressões para reduzir ainda mais esses índices? Como os agentes públicos vêm se posicionando em relação a isso?

As operadoras querem zero de conteúdo local do ponto de vista contratual, é importante frisar isso. Se não tiverem obrigação contratual de conteúdo local, ficam isentas de multas e punições.

É evidente que muita coisa é feita no Brasil, porque não tem jeito. Mas as operadoras podem, por exemplo, tentar trazer empresas de fora para produzir aqui e baratear custos.

Assim, se as operadoras não tiverem contratualmente a obrigatoriedade de índices de conteúdo local é o melhor dos mundos para elas. Ficam livres da possibilidade de serem punidas. E essa é a pressão que fazem até hoje.

O que nos impressiona é que essas atitudes vão na contramão de tudo o que aconteceu no mundo. Vamos pegar a Noruega. Aquele país estabeleceu um índice alto de conteúdo local, e o que aconteceu? Foi se construindo uma indústria do entorno do petróleo muito forte, que se tornou competitiva em qualquer lugar do mundo.

Ou seja, o que se faz no Brasil é ir contra a todas as experiências bem-sucedidas de fortalecimento da indústria nacional e do aumento da competitividade. É uma loucura, mas, infelizmente, vivemos um momento no país em que em tudo estamos indo contra as melhores práticas globais.

 

E por que o Brasil tem tanta dificuldade em aplicar políticas de promoção da sua indústria, se diversos países do mundo, como Noruega, China e Coreia do Sul, fazem isso e assim ganham competitividade global? Por que nesses países as políticas de conteúdo local são vistas como investimento e no Brasil o mercado chama de “protecionismo”?

Não é difícil entender do ponto de vista da lógica política. Infelizmente, não temos uma política industrial de Estado. E o que é isso? Independentemente do governo de plantão, segmentos da indústria terão o seu fluxo acontecendo normalmente. No Brasil, dependemos muito do governo de plantão. É uma política industrial de governo, não de Estado.

Vivemos uma lógica de “a turma deles e nossa turma”, quando há troca de governantes. Isso é um grave problema do país.

Já do ponto de vista da lógica da Petrobras, de 2015 para cá, os presidentes da empresa têm uma lógica financista, de dar lucro para o investidor privado, de fazer com o que os dividendos no fim do ano sejam altos.

Desde o último presidente da gestão de Dilma (Rousseff), o que tenho conversado com todos os presidentes da Petrobras e reafirmo em todas as entrevistas que dou é que a Petrobras é a maior empresa brasileira. Ela é metade privada, mas ela é metade pública. Portanto, o gestor de plantão tem de saber mediar essa questão.

Dou um exemplo da minha indústria. Vamos supor que, nos próximos dez anos, a Petrobras vai encomendar oito plataformas. A empresa quer fazer quatro na China, para melhorar o caixa de dar mais dividendos aos acionistas privados? Faça! Mas faça as outras quatro no Brasil. Metade da Petrobras é do povo brasileiro, e aí vamos gerar emprego no Brasil. E estamos precisando é gerar emprego no Brasil, ainda mais agora. O que estamos fazendo hoje na indústria naval é gerar emprego na China!

E pior: quando essas plataformas vêm para o Brasil, elas vêm mal-acabadas. A Modec foi penalizada pela Petrobras agora porque fez plataformas lá fora e elas são um lixo, e quando chegam aqui nós, da indústria brasileira, temos de ficar fazendo remendos nesses lixos que trazem para cá.

 

 

A indústria nacional, então, entra no momento de consertar os erros cometidos lá fora?

Exatamente. Mas sabe qual é o problema? Quando a Petrobras manda fazer uma plataforma lá fora, vai um fiscal da empresa. Se na China, por exemplo, esse fiscal exigir um parafuso “A” no lugar do parafuso “B” que estava no projeto, a resposta será negativa: “o parafuso é assim, você comprou o parafuso assim”.

Aqui no Brasil, a Petrobras coloca, dez, 15 fiscais nos estaleiros, e cada dia um exige mudanças no projeto. E aí falam “ah, no Brasil é mais caro”, e é lógico que tem de ser! Mudam o projeto o tempo todo, como isso não vai encarecer o preço final? “Ah, obra no Brasil atrasa”, é claro que atrasa, pelo mesmo motivo!

Há uma diferença na forma de tratamento dada pela Petrobras para os estaleiros brasileiros e os chineses. Na China, vale o escrito, e se não quiser não há problema, o estaleiro vende para outro cliente, porque vai haver alguém interessado. E caso não haja outro cliente, a plataforma vai ficar na prateleira do estaleiro, porque o governo chinês banca.

Então, o grande problema é que não temos uma política de Estado, e precisamos disso. E aí temos de discutir quais os setores da indústria nacional serão ajudados.

Por que a indústria automobilística vem sendo beneficiada há 50 anos e gera hoje a mesma quantidade de empregos que a indústria naval gerou até 2014, cerca de 80 mil empregos diretos? É uma indústria que tem incentivo de toda ordem, e aí, quando não acha suficiente, faz o que a Ford está fazendo, fechando a produção no Brasil. Isso não é justo.

Se o Brasil quiser ser desenvolvido, acho que temos de rezar para passar logo estes um ano e nove meses, mudar o governo e construir uma política de Estado para a indústria nacional.

 

Que papel a Petrobras ocupa hoje na promoção do conteúdo local? E que papel deveria exercer? Ela já foi a grande locomotiva da indústria naval brasileira.

Historicamente, a indústria naval, em qualquer lugar do mundo, na China, Coreia, leste europeu, Europa como um todo, Estados Unidos, ou seja, países e regiões onde ela é forte, tem de alguma forma a mão do governo.

Na China, o governo é sócio dos estaleiros. Na Coreia, há uma indústria de conteúdo local forte. No Japão, a linha de financiamento de bancos públicos é taxa de juros zero para esse setor. Nos EUA, a cabotagem só pode ser feita com navio americano, produzido lá e tripulado por americanos. A Noruega tem uma política de conteúdo local forte. A Dinamarca oferece linhas de financiamento… Em resumo, de alguma forma o governo intervém para fortalecer a indústria naval.

No Brasil, como tem de ser essa influência governamental? Nós temos de ter a demanda da Petrobras, ela é a maior empresa brasileira. Se a nossa maior empresa não demanda os nossos estaleiros, imagine as outras operadoras?

Imagine eu chegando na Shell e falando “olha, nossos estaleiros fazem bons produtos, podemos negociar preços, entregamos no prazo, somos bons”. A resposta da Shell é óbvia: “se nem a Petrobras compra de vocês…”

Então, como querer disputar mercado fora do Brasil se nem a maior empresa nacional compra de mim? E ainda difama a minha imagem, diz que sou caro, que atraso obra…

E ela precisa fazer o contrário: construir no Brasil, fazer do Brasil uma potência da construção naval, e aí sim vamos disputar mercado global. Se tivermos incentivo, vamos ser competitivos, vamos disputar com a China, com a Coreia.

O problema é que o governo quer competitividade com três, quatro anos de demanda. Em qualquer país do mundo, a indústria naval só foi competitiva com 20, 30 anos de incentivos. Temos curva de aprendizagem, temos a indústria de navipeças a ser desenvolvida.

Sempre cito o exemplo das hélices. Como uma indústria de hélices virá para o Brasil para construir meia dúzia de peças por ano? Não virá. Precisamos ter uma grande demanda aqui para atrair esses fabricantes, para que atendam o mercado brasileiro e a partir daí comecem a fornecer para outros países. Se não tiver essa demanda aqui, vão para a China, vão se estabelecer lá e exportar para cá.

E aí entra a política de Estado, precisamos pensar a indústria a médio e longo prazos. Não dá para pensar indústria por “soluços”.

Tivemos o Plano de Construção Naval (PCN) 1, o 2, a Petrobras investindo na indústria naval… aí para, aí volta, é cíclico, e é toda vez que a Petrobras deixa de investir.

O último período foi o dos governos Lula e Dilma, estamos falando de 12 anos de investimentos. Com 12 anos de investimentos na indústria naval, o que aconteceu? Conseguimos ser o segundo maior produtor mundial de barcos de apoio (que realizam operações marítimas e atendem plataformas). Estávamos disputando o mercado internacional, foram construídas mais de 250 embarcações desse tipo no Brasil entre 2003 e 2014. Como dizer que não fomos competitivos? Sim, fomos, e o resultado está aí. E por que isso aconteceu? Porque a Petrobras apenas disse que ia precisar desses barcos e exigiu do armador que ele contratasse a construção no Brasil. Nada além disso.

Trabalhei em uma empresa que operava navios. A partir da demanda da Petrobras, ela decidiu instalar um estaleiro no Brasil, porque decidiu que construiria aqui as embarcações que operaria aqui. E foram mais de 50 embarcações construídas nesse estaleiro. E isso, claro, pagou todo o investimento.

 

Mas hoje vemos a Petrobras reduzindo seu tamanho, suas operações e sua verticalização… E isso não afeta somente a indústria naval, mas vários outros setores da economia brasileira.

Vamos falar do refino: viramos capitania hereditária novamente. Mandamos o ouro para fora, e eles mandam para nós a banana. Temos petróleo em abundância no nosso subsolo, conseguimos desenvolver a capacidade de explorar o pré-sal, com tecnologia desenvolvida aqui. Aí exportamos esse petróleo cru para depois comprar gasolina… Por quê? Por que não ter mais refinarias no Brasil? Para piorar, a Petrobras vai vendendo ativos e diminui de tamanho, não só do ponto de vista de profissionais, mas do tamanho concreto da empresa. “Ah, não, mas a Petrobras tem de ser para explorar o petróleo”, não, ela tem de ser verticalizada! Ela tem de explorar, refinar e distribuir os derivados.

De novo, cito a empresa em que eu trabalhei. Tudo o que puderam fazer para verticalizar as operações foi feito. Isso criou empregos dentro da empresa e foi barateando custos.

Já a Petrobras está fazendo a lógica inversa do que deve ser feito, do que é feito globalmente, que é a verticalização. Essa fase da terceirização de tudo passou.

 

O Sinaval tem algum cálculo do que o país perde com a redução dos índices de conteúdo local? Geração de emprego, tributação, movimentação econômica, etc.?

São números muito difíceis de calcular, mas podemos apontar alguns caminhos. Tínhamos 82 mil empregados diretos na indústria naval em 2014. Numa conta simples, de quatro empregos indiretos para cada trabalhador direto, podemos falar em um total de 330 mil a 350 mil empregos. Hoje, estamos com algo entre 9 mil e 10 mil empregos diretos, o que daria um total de 40 mil, entre diretos e indiretos. Ou seja, estamos falando de quase 300 mil pessoas sem emprego somente na indústria naval.

Considerando que cada uma dessas pessoas forma uma família de quatro pessoas, em média, falamos de 1,2 milhão de pessoas fora do mercado consumidor. E aí eu falo da mercearia do bairro, da padaria, do supermercado, da farmácia, que tiveram suas vendas reduzidas porque diminuiu a quantidade de gente comprando. Esse desempregado está tentando ser Uber ou entregador e assim sobreviver com gêneros de primeira necessidade, ainda mais nesses tempos de pandemia.

O que quero mostrar é que muita coisa é afetada quando você tem um desempregado no Brasil. Você mexe com a economia local e com toda a economia.

Vou citar o exemplo de Rio Grande (no Rio Grande do Sul). Foram construídos lá três estaleiros, e dois fecharam. Quando estava tudo a pleno vapor, mexeu positivamente com toda a economia da cidade. Assim, o dono da empresa de ônibus aumentou a frota para atender aos trabalhadores dos estaleiros. A “senhorinha do marmitex” ampliou, virou um restaurante. Todo mundo começou a ganhar dinheiro, a renda subiu, e a prefeitura arrecadava mais.

Recebi o prefeito da cidade quando fecharam os estaleiros. E ele chorou na minha frente. A arrecadação foi reduzida a 10% do que era quando ele ganhou as eleições.

Na época, fiz umas contas básicas e constatei que só o que a cidade havia perdido de arrecadação em um ano construiria um hospital equipado. É uma loucura. Em uma cidade pequena como Rio Grande, a perda dessa arrecadação deixou no papel um hospital que atenderia não apenas a cidade, mas outras cidades pequenas do entorno.

 

Esse exemplo já ilustra bem o que vem acontecendo em Campos dos Goytacazes e Macaé, com a venda de ativos pela Petrobras e o fechamento de unidades pela empresa…

Exato! Vá hoje em Cavaleiros, em Macaé (bairro da cidade que cresceu residencialmente e comercialmente por causa dos investimentos da Petrobras e de outras empresas na região). Parece uma terra fantasma. Na época do boom, bombava de gente, restaurantes lotados, tudo lotado. Hoje está tudo fechado. O desemprego fez isso.

 

Sem entrar no mérito político, é claro que a Operação Lava Jato promoveu um real ataque à indústria nacional. Como recuperar essas perdas?

Precisamos que a Petrobras, a maior empresa brasileira, retome as demandas no Brasil. Sem a Petrobras voltar a investir no Brasil, dificilmente a indústria do entorno vai sobreviver. E não somente o setor naval, mas toda indústria que depende muito da Petrobras. Este é o primeiro ponto: precisamos da retomada dos investimentos da Petrobras no Brasil.

Também precisamos discutir uma política industrial. Não dá mais para ficar à mercê de governos de plantão. A indústria brasileira não aguenta mais isso.

Reconheço um erro pelo qual eu mesmo me puno. Participei do governo Lula, muita coisa foi feita, mas não amarramos essa política de forma a evitar esse desmonte. Tanto que em duas penadas destruíram tudo o que foi feito.

Precisamos ter um governo que pense a indústria brasileira como solução para a crise socioeconômica que vem atingindo o país, e ainda mais agora com a pandemia. Precisamos que a indústria funcione para gerar emprego. Se a indústria não gerar emprego, a economia não vai girar.

Por fim, vamos ver o que o novo presidente da Petrobras (o general Joaquim Silva e Luna) irá fazer. Em geral, militares costumam ter uma visão mais nacionalista. Vamos ver se ele seguirá esse padrão. Ao menos que ele crie um espaço de diálogo com a indústria nacional. Mas só saberemos isso após ele “sentar no trono” e se sobrar alguma coisa, porque a gestão de Roberto Castello Branco adotou uma política de “terra arrasada” e está sendo concluída com mais maldades contra a Petrobras.