Do Jornal Brasil de Fato – Os apagões cada vez mais frequentes em São Paulo despertaram discussões sobre o futuro do contrato do governo federal com a empresa italiana Enel, concessionária do serviço de distribuição de energia na cidade. Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato defendem que o Estado volte a atuar no setor, considerando as crises em série verificadas no segmento, privatizado principalmente a partir da década de 90.
A reversão de privatizações no setor elétrico, aliás, é mais comum mundo afora, puxada principalmente pela reestatização da distribuição, ramo da Enel. Ao todo, já foram realizadas mais de 392 reestatizações no setor de energia. Dessas, 168 – quase a metade – ocorreram no setor de distribuição.
Os dados foram tabulados pela entidade holandesa Transnational Institute (TNI). A organização compila a reversão de privatizações realizadas no mundo todo desde o ano 2000. Os dados coletados pela TNI são disponibilizados num site mantido pela entidade.
A TNI já catalogou 1.718 casos de reestatização. Desse total, 22,8% ocorreram no setor de energia. No setor de água, o segundo com mais eventos, foram 379 casos ou 22% do total.
De acordo a TNI, no ano passado foi definida uma reestatização do serviço de energia, em Beirute, no Líbano. Lá, a mudança ocorreu no setor de iluminação pública.
Já em 2022, foram sete ocorrências. Em 2014, há dez anos, outras 20. Entre 2010 e 2013, foram realizadas 149, com o pico de 41 reestatizações de energia em 2010.
As privatizações foram revertidas para redução do custo do serviço, aumento da qualidade dele ou para busca de melhorias em políticas públicas. Houve casos de reestatizações realizadas por meio de rompimento de contrato ou mesmo em casos em que a empresa foi à falência. São mais comuns, porém, as reestatizações realizadas quando o governo simplesmente decide não renovar contratos de concessão.
Só na Alemanha, o TNI registrou 284 reestatizações do setor de energia, sendo que 161 ocorreram no serviço de distribuição. Houve também 13 reestatizações neste setor na Austrália, 6 na Holanda, 19 na Espanha, 15 no Reino Unidos e 11 nos EUA.
No Brasil, o TNI cataloga a negociação de um aditivo de contrato com a Light, do Rio de Janeiro, como uma única experiência de reestatização elétrica do país. Informa que o contrato com o poder público foi rescindido e assinado novamente com a mesma empresa.
Solução para São Paulo?
Clarice Ferraz, economista e diretora do Instituto Ilumina, já afirmou ao BdF que a reestatização do setor de distribuição de energia deveria ser uma alternativa para solucionar a crise vivida pela cidade sob a concessão da Enel. Para ela, a criação de uma empresa estatal para distribuição de energia para a capital paulista poderia representar uma experiência para a reorganização de todo o setor elétrico nacional.
“Poderia ser criada uma experiência inovadora com o caso Enel”, disse ela. “Poderia ser construída uma inteligência estatal para a distribuidora de energia do futuro do país.”
Ikaro Chaves, engenheiro eletricista e ex-funcionário do sistema Eletrobras, reforçou a viabilidade dessa solução também em entrevista ao BdF. Para ele, caso a cidade de São Paulo voltasse a ter um sistema de distribuição de energia estatal, ele poderia servir de parâmetro de qualidade e eficiência para todo o país.
“Se o Brasil tivesse uma empresa federal de distribuição, ela poderia servir de referência para as outras. Como uma ‘sombra’ para elas e uma ‘ameaça'”, explicou. “Se a concessão não estiver funcionando num local, essa empresa estaria pronta para assumir o contrato, o que criaria uma pressão econômica.”
Oportunidade adiante
Durante o mandato do presidente Lula, três contratos de concessão de energia perderão a validade: um do Espírito Santo e dois do Rio de Janeiro, sendo um deles com a Enel e outro com a Light. Cabe ao governo decidir se os contratos serão renovados.
Se Lula disputar a eleição em 2026 e for reeleito, seu governo também poderá decidir se renova ou não a concessão da Enel em São Paulo.
Essa janela de renovações cria a possibilidade para um reestatização sem rupturas. “Quando termina o prazo de concessão, a concessão volta para o poder concedente, que é o governo federal. O governo pode renovar, relicitar ou tomar para si essa concessão, assumir o serviço, como foi feito em vários lugares”, explicou Chaves.
Contramão
Apesar dessa oportunidade, o governo do presidente Lula já publicou um decreto estabelecendo diretrizes para renovação das concessões de distribuidoras de energia elétrica que atuam em todo o país, incluindo a Enel. Para Chaves, isso é um retrocesso.
O engenheiro lembrou também que, enquanto o mundo reestatizava empresas de energia, o Brasil privatizou a Eletrobras. A venda do controle da maior empresa de energia da América Latina foi concluída durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
O governo Lula questiona no Supremo Tribunal Federal (STF) a lei que viabilizou a privatização da Eletrobras. A ideia do governo, no entanto, não é reverter a venda, mas sim ampliar o poder de voto do Estado na empresa.