Todos os países gastam mais do que têm, diz economista

Isaías Dalle / Da Imprensa da CUT

O governo interino de Temer segue escorregando em diversas cascas de banana em seus primeiros dias. Desditos, afastamento de ministro apanhado em flagrante e a sombra de Eduardo Cunha vão fazendo a história desse governo classificado, mais uma vez, de golpista pela presidenta eleita Dilma Rousseff, ontem no Congresso da Fetraf.

Mais de uma ideia obsessiva o governo interino e seus apoiadores na mídia não desistem: cortar gastos. Um dos argumentos recorrentes para apoiar essa obsessão é que o governo só pode gastar aquilo que tem. E quase sempre se recorre à metáfora do orçamento familiar.

O argumento é falso, afirma o economista Alexandre Ferraz, do Dieese, que trabalha no Escritório Nacional da CUT, em Brasília. Leia os principais trechos da entrevista.

É muito comum ouvir economistas, e integrantes do governo interino, compararem a economia do País, a gestão do Estado, ao orçamento de uma casa, como se fossem iguais e devessem ser tratadas da mesma maneira. Isso é verdade?

É uma ideia muito simplista da economia do setor público, uma analogia primária. É uma tentativa de falar com o público menos escolarizado. Mas seria mais apropriado comparar com uma empresa.

Qual a diferença nessa outra comparação?

Em comparação com as empresas, a gente sabe que um Estado não vai propriamente à falência. O Estado tem um milhão de ativos, muitos deles intangíveis, riquezas naturais gigantescas, e a gente tem de fazer enormes investimentos pra aproveitar essas riquezas sempre com visão de futuro. Uma família é muito mais presa ao presente, ao equilíbrio orçamentário mês a mês, ano a ano. O Estado, devido a essa visão de futuro, muitas vezes tem de fazer e conviver com desequilíbrios momentâneos, déficits etc, mas planejando que esses déficits presentes vão levar a superávits maiores, ao desenvolvimento maior no futuro.

Então, suponho, é falsa a ideia de que o governo tem de, permanentemente, só gastar aquilo que tem no bolso.

Essa ideia é completamente equivocada. Isso nunca foi seguido por nenhum país e jamais será seguido.

Eles dizem isso só para justificar cortes de direitos e políticas públicas?

Isso está muito ligado à ideia de ajuste fiscal. Mas, desde a crise de 2008, diversos países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que congrega os países mais ricos do Hemisfério Norte, além da Austrália, Nova Zelândia e Coreia do Sul) fizeram seguidos déficits. Mesmo políticos conservadores, como o recém-eleito primeiro-ministro do Canadá (Justin Pierre James Trudeau), eleito com a plataforma de fazer déficits pelos próximos três anos, devido aos investimentos que ele pretende fazer para que o Canadá volte a crescer e volte a ser um país de Primeiro Mundo, como eles dizem lá.

Então o déficit não é necessariamente um monstro que vai destruir a vida dos países.

De forma alguma.

As pessoas em torno do governo interino, ou ilegítimo como temos tratado, dizem que a Dilma gastou muito. Como é isso?

O déficit, como eu te disse, não é um problema em si. Quando você faz um investimento em educação, infraestrutura, você precisa zerar seu déficit futuro e ainda gerar uma renda extra, para o país se desenvolver. Agora, se você gera um déficit no presente não para gerar investimento produtivo, ou de qualificação da sociedade, se não gerar uma renda no futuro, então você usou mal os recursos. Era melhor não ter feito o déficit. Tivemos vários casos de sucesso, mas tivemos casos de fracasso, também.

Cite um fracasso.

O caso da Sete Brasil (empresa com participação da Petrobras para atuar no mercado de sondas, que acumulou prejuízos), por exemplo, é um caso de fracasso. Mas posso citar vários casos de sucesso, como a indústria naval, o Minha Casa Minha Vida, o Luz para Todos, são investimentos importantes para o país.

Em conversa com a economista Leda Paulani, ela me disse que aquele alardeado rombo nas contas no início de 2015 correspondia ao montante das isenções tributárias dadas às empresas como estímulo à produção. Você concorda com isso?

Em grande parte concordo com ela. Grande parte do engessamento do orçamento do governo foi por causa das isenções fiscais que foram concedidas aos empresários de uma forma frouxa, sem contrapartidas firmes. Isso se intensificou no governo Dilma, ela quase dobrou as isenções, e o governo achou que em lugar de investir diretamente, dando dinheiro ao empresariado, ia fazer um crowd out, iria aumentar o investimento privado, e isso não aconteceu. Dada à situação de incerteza da economia, o empresariado simplesmente pegou esse dinheiro e em vez de investir na produção colocou em títulos públicos.

Ou seja, o empresariado deixou de fazer sua parte numa intenção que havia por parte do governo.

Exatamente. É como se o empresariado deixasse de cumprir sua parte no pacto. Em parte também porque o governo foi incapaz de construir esse pacto, de forma mais firme. Teria sido muito mais produtivo para o governo gastar esse dinheiro diretamente do que ter repassado aos empresários. É interessante que para o governo, as isenções são classificadas como “gasto tributário”. O governo considera um gasto. Se tivesse gastado diretamente, teria tido muito mais resultado.

Eu queria também falar sobre a diferença que existe entre dívida e passivo. Alguns economistas costumam confundir as duas coisas?

Acho que eles não confundem não. O que eu acho que eles têm insistido é que deve haver uma identidade contábil entre ativo e passivo. O ativo e o passivo têm de estar em equilíbrio, têm de se anular.

Ficar no zero a zero, é isso?

Exatamente. Acho que tem muita discussão sobre as contas públicas e desde 2013, quando elas começaram a se deteriorar… Tudo bem, como eu disse, o déficit não é um mau em si, mas o governo tem de procurar um equilíbrio, mesmo que seja em longo prazo. Houve um momento em que nós deixamos de encontrar esse equilíbrio orçamentário, presente e futuro.

Você consegue identificar em que momento perdemos esse equilíbrio?

Em 2014 houve um descasamento, e você percebe bem isso olhando a dívida bruta e a líquida. A bruta começa a crescer mais que a líquida. E as pessoas começaram a dizer que o governo estava usando artífices contábeis para não aparecer a líquida. Então, temos que tomar cuidado com isso sim.

É o que chamam de contabilidade criativa?

Não sei se é propriamente isso. Acho que o governo tem de tomar cuidado. A CUT chamou muito a atenção do governo no Codefat (Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador), porque o governo tem de tomar muito cuidado com seus fundos. Nós da esquerda defendemos que o Estado tem de intervir, mas para isso tem de ter recursos. Se o governo perde capacidade fiscal, isso é um tiro no nosso pé, porque aí o Estado tem baixa capacidade de intervenção na economia.

No caso do Fundo de Garantia, a advertência que a CUT fazia era no sentido de não utilizar os recursos para outras finalidades que não as originalmente previstas, não é isso?

Exatamente. O governo estava recolhendo a multa de 10% e em vez de repassar ao fundo, estava utilizando o recurso para fazer superávit primário e chegou a criar um passivo de R$ 10 bilhões em três anos. O governo também retardou suas contrapartidas ao Minha Casa Minha Vida, e foi pedindo empréstimo para cobrir sua parte. Como tudo isso é transparente, os agentes econômicos vão vendo isso com desconfiança.

Para encerrar: esse caminho escolhido pelo governo Temer, de corte de gastos, de investimentos públicos, de políticas sociais, vão nos levar aonde? E qual seria a alternativa?

Claramente, chegamos à necessidade de algum tipo de ajuste. Mas como esse ajuste estava sendo feito pelo Levy (Joaquim Levy, ex-ministro da Fazenda) e que será feito agora, promove uma brecada muito forte no país. Na minha visão, era possível fazer um ajuste de forma mais suave, menos traumática para a sociedade. Então, acho que o país tinha de fazer duas coisas: primeiro, assumir que vai passar algum tempo fazendo déficit, como fizeram países da OCDE sem nenhum trauma, sem também deixar a dívida fugir do controle; então, acho que algumas reformas são realmente necessárias. Outra coisa, a gente não pode falar em corte de gastos. Acho que nossa missão é adequar o PIB ao que determina nossa Constituição. Para isso, acho fundamental repensar a estrutura tributária, para entregar à população tudo aquilo que ela contratou lá na Constituição de 88. A elite age de extrema má-fé quando reclama de aumento de imposto, pois passa a ideia de que o aumento seria para ela.

Grande parte do engessamento do orçamento do governo foi por causa das isenções fiscais que foram concedidas aos empresários de uma forma frouxa, sem contrapartidas firmes (…) O empresariado simplesmente pegou esse dinheiro e em vez de investir na produção colocou em títulos públicos. É como se o empresariado deixasse de cumprir sua parte no pacto (…) Teria sido muito mais produtivo para o governo gastar esse dinheiro diretamente do que ter repassado aos empresários.

A gente poderia desonerar o imposto sobre consumo, que onera principalmente os pobres, a gente poderia inclusive baixar a carga tributária das empresas, estimulando a produção, mas para isso seria necessário aumentar outras fontes de arrecadação. Um deles é o imposto de renda, que deveria ser mais progressivo (quem ganha mais paga mais). E há a nossa jabuticaba tributária, que é não tributar lucros e dividendos, um presente que o Everardo Maciel (ex-secretário da Receita do governo FHC) deu pro andar de cima. A gente sabe que a elite não vive de salário, ela vive de ganho financeiro, e isso é muito pouco tributado. E fora isso, a gente sempre falou muito a respeito do imposto sobre grandes fortunas, mas esquecemos de um que é essencial, que é o imposto sobre herança. Esse imposto é uma alíquota fixa, não importa se você é rico ou se você é pobre, e é um dos mais baixos do mundo. Eu estou falando de tributar aqui não o cara que tem uma casa, mas do cara que herda uma holding, que tem 30 mil imóveis. A gente tem de dizer para a população que não se quer pegar nada dela. Mas essa batalha a gente ainda não ganhou. Temos que mostrar que quem tem de pagar o pato é um pequeno grupo de 71 mil famílias, identificadas pela Receita Federal.