Vitor Nuzzi / Da RBA – O tribunal era fictício e o julgamento, uma simulação, embora observando os procedimentos formais. Ao final, o júri condenou o réu, Jair Messias Bolsonaro, pelos cinco crimes apresentados pela acusação. Todos com pena máxima, segundo a presidenta da corte, a desembargadora aposentada Kenarik Boujikian, que anunciou a sentença às 11h48 desta quinta-feira 25). “Este tribunal é um grito de clamor por justiça”, disse ao final.
O presidente da República foi condenado por crimes contra a humanidade, genocídio, epidemia, infração de medida sanitária preventiva e charlatanismo. Dos cinco, o tema genocídio, que inclusive dava nome ao tribunal, foi o que mais causou polêmica. A defesa do réu, em nome do advogado criminalista Fábio Tofic Simantob, não negou os crimes do acusado ou seus “atos nefastos”, mas discordou da imputação de genocídio entre eles.
A acusação foi representada pela jurista Deborah Duprat, ex-procuradora federal dos Direitos do Cidadão. Os jurados eram Arthur Chioro (médico sanitarista, ex-ministro da Saúde), Frei David (teólogo e filósofo), Edson Kayapó (ativista), João Pedro Stédile (MST), Luana Hansen (DJ, MC, ativista cultural, LGBT), Lucineia Rosa (professora e médica) e Sheila de Carvalho (Uneafro e Coalizão Negra por Direitos). O “fórum” foi o palco do Teatro Universidade Católica (Tuca), na sede da PUC de São Paulo, no bairro de Perdizes, zona oeste.
“Não foi acidente, foi um projeto”
Antes do julgamento, o jornalista Leonardo Sakamoto, professor da universidade, questionou os motivos que fizeram o país ter chegado à atua situação, com um morticínio equivalente a uma bomba atômica. E a maior parte das 613.339 mortes pela covid-19 (até ontem) seria evitável, observou. “Não foi um acidente, foi um projeto”, disse Sakamoto, falando em sabotagem, em ataque sistemático às medidas de isolamento social, ao uso de máscaras e à vacina, agravando a contaminação e piorando a própria crise econômica. A PUC fez homenagem ao professor André Russo, que morreu em junho, vítima de covid. O julgamento simbólico, transmitido na manhã de hoje pela TV PUC e pela TVT, foi organizado por um coletivo que leva o seu nome.
A acusação exibiu vídeo com o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), um dos expoentes da CPI da Covid, que entregou seu relatório há um mês. Bolsonaro foi citado por 10 tipo penais. “Não nos resta dúvida da responsabilidade do presidente da República por estes crimes”, disse Randolfe, defendendo a condenação.
Atos e declarações
“Quem é que comandou todas as estratégias de enfrentamento à covid? Quem é que desautorizou medidas sanitárias?”, questionou a ex-subprocuradora Deborah Duprat. Ela lembrou, por exemplo, que ainda no início da pandemia o presidente da República voltou de viagem ao exterior com parte da comitiva infectada. Posteriormente, insistiu em tratamentos sem eficácia, contrariando cientistas brasileiros e a própria Organização Mundial da Saúde (OMS). “Temos que lembrar que dois ministros da Saúde foram demitidos, ou se demitiram, porque não concordaram com a orientação do presidente da República.”
A jurista também citou inúmeras declarações de Bolsonaro contrárias ao tratamento e à prevenção. E sua presença em manifestações, provocando aglomeração, sem uso de máscara. Citou, entre os exemplos, episódio ocorrido em junho, quando ele abaixou a máscara de uma criança durante evento realizado no Rio Grande do Norte. “Essas cenas icônicas ser lembradas. (…) Se tudo estava terrível, pior ainda se deu com os indígenas.”
Ela incluiu o presidente em dispositivos do artigo 7º do chamado Estatuto de Roma, do Tribunal Penal Internacional. Esse item trata de crimes contra a humanidade e atos desumanos.
Atos nefastos
Ex-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Fábio Simantob iniciou sua arguição lembrando que estava ali para defender a legalidade. “Não venho fazer apologia do presidente da República, dos atos nefastos praticados pelo governo Bolsonaro. Não venho, muito menos, negar os fatos e as provas. O que venho pedir é que, dentro da PUC, possamos ser uma barreira contra o arbítrio, contra o autoritarismo penal, que nós sejamos um exemplo de como se deve aplicar a lei num Estado de direito”, defendeu.
Para o advogado, o réu poderia ser condenado, por exemplo, por crimes contra a humanidade ou por charlatanismo, mas não por genocídio. “A política criminosa do governo Bolsonaro foi absolutamente democrática, ela alcançou a absolutamente todos, não foi direcionada a este ou aquela grupo, a determinada classe de pessoas”, argumentou Simantob. “Não há como negar os crimes cometidos durante a pandemia.” Segundo a própria defesa, o presidente é “réu confesso” por apologia ao descumprimento de normas sanitárias.
Necropolítica como modo de governo
Depois da acusação e da defesa, foi a vez de os sete jurados se manifestaram. O primeiro deles, Arthur Chioro, começou contestando a “tese esdrúxula da imunidade de rebanho, desconsiderando a gravidade do evento pandêmico, o maior em 100 anos de história”. Para o ex-ministro, Bolsonaro também é culpado pela redução da expectativa média dos brasileiros em dois anos, “fato que não ocorria desde 1945”.
Ele contestou a defesa. “A covid não foi democrática. matou de forma diferente os pretos, os pobres, as pessoas de periferia e todas as populações vulneráveis, em especial as populações indígenas”, afirmou. Mais do que omitir, o presidente atrapalhou as ações de combate, com negacionismo e “negocionismo”. Por essas e outras razões, concluiu Chioro, ele deveria ser condenado “para que a necropolítica nunca mais seja modo de governo”.
“Alguém tem que pagar por isso!”
Fundador da Educafro, Frei David, falou em 400 mil mortes que poderiam ter sido evitadas. “Dessas 400 mil, quantos eram afro-brasileiros?”, questionou. “Mais de 30% dos cotistas das universidades federais foram obrigados a abandonar suas vagas. Isso eu não aceito! Alguém tem que pagar por isso! (…) Quem é que tem dúvida que o povo indígena sofreu sim um extermínio, um ataque violento nesse governo, o povo negro?”
O líder sem-terra Stedile destacou ainda crimes ambientais do governo, que classificou de “insano, irresponsável e genocida”. Citou a “liberação de mais de 400 novos rótulos de agrotóxicos, que matam a biodiversidade, matam seres vivos na nossa natureza, provocam alteração no clima e o câncer nos seres humanos”. Propôs que Bolsonaro devolva recursos desviados na chamada rachadinha. “E que ele revele quem mandou matar Marielle Franco, quem mandou matar o miliciano Adriano Nóbrega, seu colega.”
Para Luana Hansen, a população negra está sendo exterminada, assim como os índios, e a periferia – onde as pessoas são previamente tratadas como culpadas – segue morrendo. Enquanto isso, emendou, “o pseudo presidente ainda tem defesa, e é julgado”, um “privilégio branco, elitista”. “A gente está aqui tentando culpabilizar uma coisa que é óbvia. Espero que seja julgado como muitos dos ditadores nazistas não foram.”
A primeira vítima
A educadora Lucineia citou declarações de teor racista de Bolsonaro, ainda antes de ser eleito presidente. “Há uma continuidade de um genocídio, que aumenta com essa pandemia, quando não existiu qualquer política de enfrentamento que deveria começar nesse governo federal. Quando ele nomeia na Fundação Palmares alguém que fala como ele”, acusou. “Não foram um ou dois membros da minha família mortos, não foram um ou dois amigos.”
Última jurada, Sheila lembrou que a primeira pessoa morta na pandemia “foi uma empregada doméstica, preta”, no Rio de Janeiro. “Ninguém sabe o nome essa mulher, suas dores, quem ela deixou.” Cleonice Gonçalves, que morava no município de Miguel Pereira, levava horas para chegar a seu trabalho, no bairro do Leblon, zona sul carioca. Morreu contaminada depois que sua patroa voltou de viagem da Itália. “A intenção de nos destruir sempre esteve presente. Ele só encontrou mecanismos mais eficazes para fazê-lo”, disse Sheila.